Inspirada
na mediação das palestras que me convidaram a fazer para o IV Congresso
Nacional de Antropologia Forense (CONAF), cujos palestrantes eram
internacionais e iriam expor seus temas na língua espanhola, fui convidada a
revisitar um passado que considero um divisor de águas na minha vida: o meu
período de doutorado sanduíche, que aconteceu na Universidad de Granada
- Espanha, sob anuência do professor Miguel Botella, não coincidentemente, um
dos palestrantes ao qual mencionei anteriormente. Embora tenha sido com a sua
aprovação a estância ali foi com orientação da professora Inmaculada Aleman, a
quem, já de início, devoto e teço todos os elogios possíveis e existentes. Sabe
aquela pessoa que nunca está de mau humor? Que nunca reclama de nada? Que te
ajuda em tudo? É ela. Acho que nunca a vi sem um sorriso no rosto. Inma, você é
sensacional e foi determinante para que tudo tenha sido acima das minhas
expectativas. Aliás, todas a pessoas que me rodearam ali são especiais. Mas já
falo delas também. O que eu acho mesmo é que os espanhóis sabem viver melhor a
vida, por isso são todos muito agradáveis e sempre, sempre, sempre, me ajudavam.
Há quem diga que eles não são assim, mas a estes digo que acho que confundem
sinceridade com grosseria. Isso é tema para um outro texto (risos).
Mas volta, Laíse, o tema aqui é a
sua vivência em Antropologia Forense fora do Brasil, mais precisamente lá na
Espanha. Então vamos lá. Como mencionado,
eu fui para a Espanha durante o meu doutorado, no 3º ano deste, e passei o ano
todo lá. Antes disso, fiz mestrado e especialização em Odontologia Legal na
Faculdade de Odontologia de Piracicaba – UNICAMP, sempre pesquisando e sendo
uma apaixonada pela Antropologia Forense e, não diferente, vinha dando
sequência a alguns estudos nessa área no doutorado.
À princípio achei que nunca seria
merecedora, escolhida ou contemplada com uma bolsa sanduíche. Até porque achava
que os países de língua inglesa seriam as escolhas dos meus orientadores, e
confesso que esse não é o meu forte. O inverso do espanhol, ao qual sempre me
interessei, fazendo cursos e sendo a mais dedicada das pessoas ao seu estudo.
Um belo dia, nos corredores da faculdade escuto meu orientador dizer que “vai
perder a bolsa sanduíche porque o aluno que ia fazer jus não se interessou e o
prazo ia acabar”. Na mesma hora eu disse: “como assim? O nosso programa não
pode ‘perder’ essa bolsa. Eu quero, eu vou e eu consigo tudo nesse prazo aí”.
Pronto, estava lançado meu principal desafio para o sanduíche: correr contra o
tempo e dar conta de TODA burocracia envolvida. Não sei como está hoje, mas na
época, eu precisei até autenticar todas as assinaturas dos meus diplomas
(imagina ir atrás dos cartórios onde reitores e afins tinham firma reconhecida?).
Bom, eu não sei como, mas consegui. Até porque (e antes da burocracia
principal), a universidade fora tem que aceitar você e a primeira escolha do
orientador foi uma na Inglaterra, mas pelo melhor dos acasos, ele acabou
desistindo dela e sugerindo a Espanha. Aí sim, aí tudo deu certo.
Cheguei em Granada no início de
dezembro de 2016, num inverno que eu nem sabia que existia e descobri que as
coisas não eram tão simples assim. Como boa representante nordestina, suportar
aquele frio foi desafiante e, digamos, traumático. Além disso, mesmo com toda
dedicação prévia, entender e me fazer entender em espanhol foi, à princípio,
assustador. Para quem acha que é fácil sugiro um período em qualquer país hispanofalante
(risos). No primeiro dia, fui recepcionada pelos professores Miguel e Inma e convidada
a conhecer toda a faculdade. Vou me arrepender por colocar essa foto aqui, mas
é único registro que tenho desse primeiro dia.
Primeiro dia na Faculdad de
Medicina da Universidad de Granada, com os professores Inma e
Miguel.
Eu entrei na Universidad de
Granada inserida no Departamento de Medicina Legal, Toxicología y
Antropología Física, área de Antropología Física, até então
coordenado pelo professor Miguel Botella. Como o nome sugere, esse departamento
fica localizado na Facultad de Medicina, um complexo que, aliado aos
outros cursos da área da saúde, exceto Odontologia, é de uma imponência e
beleza sem igual. Vai ter que ter foto para eu conseguir traduzir o que estou
dizendo e o que eu senti quando vi e entrei lá pela primeira vez. Tudo era (é)
lindo e MUITO moderno.
Vista anterior e
esquerda da Facultad de Medicina da Universidad de Granada.
Vista posterior e direita da Facultad
de Medicina e da Facultad de Ciencias de da Salud da Universidad
de Granada.
Essa foi uma das principais
diferenças que encontrei ali. A Odontologia não fazia parte do complexo da
saúde e a promessa era de que, um dia, o curso iria sair do prédio que ficava
no centro da cidade, ao qual eu apenas visitei. Durante todo o ano do sanduíche
eu frequentei e estudei na Facultad de Medicina, mais precisamente na ‘planta
B’, esse prédio, dentre os iguais, localizado no meio, no 4º andar. Bom, no
4º andar ficava toda a seção de Antropologia, com as salas dos professores,
salas dos convidados, sala de alunos, biblioteca própria e um acervo histórico,
sala com equipamentos e materiais de pesquisa, de fotografia, além da salinha a
qual me instalaram. Eu a dividia com o Javi e a María, no começo, e depois ela
foi substituída pelo David (não podia deixar de mencioná-los, afinal foram meus
parceiros, minha companhia, meus tira-dúvidas e com quem eu aprendi muito, com
as simples conversas - verdadeiras aulas). Eu também usufruía das salas de
estudo nos demais andares e muitas vezes, preferia e adorava ficar diretamente
no subsolo, onde ficavam as coleções osteológicas, embora a vista da minha sala
fosse uma das mais lindas, pois ao fundo via parte do conjunto montanhoso pertencente
a Sierra Nevada. No subsolo ficavam os dois laboratórios que eram meu
objeto de interesse. No primeiro, já citado, ficava a coleções osteológica
contemporânea de adulto, e no segundo a de esqueletos infantis. A Universidade
de Granada tem uma coleção significativa de ossadas de subadultos, o que a
torna também um centro mundial de pesquisas nessa área.
Vista da sala em que
eu fui instalada. No inverno era lindo ver as montanhas cobertas de neve.
Com Jávi e María, na “nossa” sala.
Com David, no laboratório 2, fazendo limpeza de ossos
infantis.
No laboratório 2, onde ficam os esqueletos infantis, com
Jávi e David, estudando “niños”.
Disposição das coleções no Laboratório 1 de Antropologia.
Visão panorâmica da disposição das coleções osteológicas no laboratório 1.
Voltando, a ausência da Odontologia
não era apenas física, com o passar do tempo percebi que a Antropologia Forense
ali na Espanha, se estendendo a outros países da Europa, não ‘era muito coisa
de dentista’. Não havia nenhum estudante de Odontologia, seja da graduação ou
da pós, naquele ambiente e eu era a ‘estranha no ninho’. Exceções aconteceram
quando, durante o ano todo que fiquei ali, eles receberam a visita de pós
graduandos de Odontologia em áreas forenses, interessados em aprender e fazer
pesquisa em Antropologia. Contudo, todos eles, à época, eram provenientes de
países pertencentes a América, como México, Chile, Argentina, dentre outros,
que passavam alguns dias ou meses. Os estudantes de pós-graduação e
pesquisadores vinculados, que pertenciam ao curso de Antropología Física y
Forense da Universidad de Granada (esse é o curso do mestrado que
eles têm e para quem tiver interesse em saber mais, segue o link: https://masteres.ugr.es/antropologiafisica/),
eram em sua maioria, graduados em Biologia, Criminologia (lá é uma graduação -
que inveja deles) e Arqueologia. Tive a oportunidade até de gravar conteúdo
para a turma de mestrado. Isso mesmo, gravações, quase ao estilo, Bones (risos).
E claro, os professores vinculados ao departamento variam a sua formação também
nessas mesmas áreas citadas, além da Medicina, e davam aulas também nestas
graduações (eu tive a oportunidade de assistir aulas da Inma e do Miguel nos
cursos de Direito e Criminologia). E vocês devem estar se perguntando, ‘como
assim, e os dentes? Dentista que entende de dente’. Pasmem, eles sabiam MUITO
sobre dentes, muitas vezes mais do que eu (que vergonha!). Não estou falando no
âmbito clínico obviamente, me refiro a anatomia, interpretação de patologias e
características encontradas nos elementos dentários dos esqueletizados,
acrescido também de um contexto histórico, afinal, como puderam perceber na
foto em que é a disposição das estantes do Laboratório 1, eles não têm apenas
uma coleção osteológica contemporânea. Existem diversas coleções e indivíduos
pertencentes aos períodos neolítico, medieval, dentre outros. A gente não tem
noção do que isso representa. Historicamente nós (Brasil) somos um bebê, perto
da Europa e, mais especificamente a Espanha, por isso tanta necessidade e
interesse em arqueologia, antropologia física. Não raro existem muitas
escavações em meio a cidade para remontar o passado e como viveram os
antepassados. Ao retornar a Granada, quase um ano após o meu período sanduíche,
tive a oportunidade de acompanhar essas escavações de perto, durante um dia
(que sensação incrível).
Dia das gravações para o mestrado
em Antropología Física y Forense da Universidad de Granada.
Dia de visita às escavações.
Dia de visita às escavações.
Retomando do ponto da
Odontologia, aqui no Brasil, a Odontologia Legal e a identificação humana são
quase ‘sinônimos’ (calma pessoal da área, vou me fazer entender). Talvez essa
parte da nossa especialidade seja a mais representativa e conhecida pelos leigos.
E onde eu quero chegar com isso? Eu sei que lá tem a Facultad de Odontología,
também pertencente a Universidad de Granada e eles têm sim a área e
disciplina de Odontología Forense, com conteúdo mais voltado para dentes
e conhecimentos que nós também temos aqui, mas eu mesma não frequentei e não
posso falar muito a respeito. E o foco aqui é a Antropologia Forense, que
repito, era totalmente vinculada a Facultad de Medicina, com
departamento próprio (já citado, Departamento de Medicina Legal, Toxicología
y Antropología Física). O mais próximo que cheguei da Odontología
Forense lá foi em um curso que eu fiz (pago, aberto a todos e que tem todo
ano - pelo menos tinha até a pandemia), chamado Curso Avanzado em
Antropología Forense, no qual houve a temática: Estudio de los dientes
em Antropología Forense. Estava ansiosa pelo conteúdo, mas quando assisti, nada
de diferente do que sabemos aqui foi falado (aliás, nesse aspecto, achei muito
básico). Pelo que vi ali, naquele momento, nós aqui temos, digamos, uma maior
complexidade no que diz respeito ao estudo das técnicas e métodos de
identificação por meio dos dentes. Nesse curso, fiz uma série de
questionamentos e diante das respostas percebi o porquê dessa minha percepção,
não só em Odontologia, mas em tudo que era “forense”.
Esse termo, no nosso meio, nos
leva a “necessidade de investigação, perícia” (não estou aqui definindo nada,
nem criando conceitos, hein pessoal!). É inegável a nossa necessidade de
responder as perguntas da “justiça”, uma vez que estamos atrelados a uma série
de situações bizarras que acontecem no Brasil. Formas de morte e lesões das
mais criativas e violentas possíveis, as quais nos deparamos e que precisam ser
entendidas e respondidas às autoridade competentes e a sociedade. E isso
dificulta ainda mais no caso dos esqueletizados e, sobretudo nestes, uma vez
que, são “apenas” os ossos, o material restante a ser analisado.
Nessa perspectiva, a ocorrência e
a variedade de situações nos trazem diferentes tipos de casos que precisam ser
decifrados e, por isso, melhor e mais a fundo estudados, pesquisados. Como eles
vão entender melhor de casos violentos, da investigação “forense” se, para eles
pouco ou raramente acontecem? Então, como não há demanda relativa à violência,
portanto não há necessidade de muitas discussões nesse âmbito. E essa foi uma
das principais diferenças que ali encontrei. Conversando informalmente no Instituto
de Medicina Legal (IML) de lá, sobre a quantidade de mortes violentas por
arma de fogo, descobri que eles registraram 6. Ok, um número razoável. “Seis,
por semana ou por mês?”, questiono. “Não, 6 no ano”. “Ah? Como assim, NO ANO?”.
“Sim, isso mesmo, 6 no ano” (perguntei várias vezes, no ano? No ano mesmo?
Certeza?). Pasmem, 6 corpos chegaram ao IML, com morte ocasionada por projétil
de arma de fogo NO ANO TODO. Imaginem o encontro de ossadas. E digo, de ossadas
contemporâneas, claro. Porque as de interesse da Arqueologia são em número bem maior
(risos) e a partir daí encontrei outra grande diferença no estudo da Antropologia
Forense que tive lá. Aqui, geralmente as perguntas iniciais que são feitas no
encontro de ossadas são: é osso? É humano? São quantos indivíduos? E por aí
vamos afunilando em busca de um perfil biológico. Lá, após saber se é humano,
tem que se saber se é contemporâneo, ou seja, ossadas datadas com mais de 20
anos já não são mais de interesse forense e sim, antropológico e arqueológico. Claro
que, o período de 20 anos é curto para “não ser mais contemporâneo”, mas se
inclui aí também o período prescricional dos eventos violentos. Não que no
Brasil não haja datação de tempo de morte e prazos prescricionais, quis enfocar
que a pergunta da contemporaneidade é algo muito mais natural e de rotina para
eles, o que não acontece por aqui. Ah, claro, ia esquecendo, não há
odontolegistas no IML e este é tão lindo e moderno quanto a faculdade.
Instituto de Medicina Legal de
Granada, ao lado, a Facultad de Medicina.
Sala de necropsia do Instituto
de Medicina Legal de Granada.
Imagino que já estejam cansados
dessa aventura toda e me preparo para o fim, mas afirmo aqui que poderia
escrever um livro sobre essa experiência de vida. Sim, de vida! É muito válido
para o nosso país, a experiência fora, seja ela em qualquer lugar do mundo. Sem
dúvida, eu voltei uma pessoa melhor e uma professora melhor. Não falei antes,
mas quando passei no doutorado eu já era concursada, era professora de
Odontologia da Universidade Federal do Maranhão, lugar ao qual devoto muito
carinho e cuja saudade é sem tamanho. Hoje, escrevendo esse texto sou
professora de Odontologia Legal da Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
minha terra natal, e escrevo a pedido da Liga Acadêmica de Odontologia da UFPB,
a qual tenho muito orgulho de fazer parte, ao lado da professora Bianca
Santiago. Então, voltando, o aprendizado ali foi imensurável. Ao governo
brasileiro, posso dizer que esse é um investimento e não um gasto, e MUITO importante.
Se os governantes soubessem (e quem passou também talvez possa confirmar o que
digo) o quanto é enriquecedor e transformador essa experiência, garantiria a
todos os docentes. O crescimento profissional é imenso e o pessoal é maior
ainda. Vivenciar as diferenças é promover conhecimento e ensinamento, em
quaisquer das áreas. Não sei se sou uma boa professora, mas sem dúvida sou uma
professora com um olhar mais amplo, menos engessado nos moldes brasileiros e
oportuno aos meus alunos tudo que aprendi, que reaprendi e que vivi. Porque,
por maior que seja leitura sobre, a gente aprende mesmo é vendo, vivendo e
sentindo. Não há letra, palavra ou sentença que substitua o ver, o ouvir, o
sentir, o tocar e finalmente o vivenciar.
Por fim, o que posso resumir para
vocês:
- Percebi que eles (europeus no
geral) dão MUITO mais valor a ciência, pesquisa e cultura e que respeitam MUITO
mais quem trabalha (e estuda) com isso.
- Pelo motivo acima, existe um
financiamento e um apoio MUITO maior, desde a base, para a educação e pesquisa.
- Descobri também que nós (brasileiros)
somos MUITO BONS (inteligentes e capacitados) e fazemos literalmente milagre com
o que o nosso país investe em pesquisa e educação para obter os resultados que
temos em muitas áreas do conhecimento (sim, nós temos esse ‘complexo de
vira-lata’, conforme já vislumbrou Nelson Rodrigues). Ganhar menção honrosa em
um evento lá só corroborou o que senti, desde o começo.
- Que nós, juntos, somando experiências, seremos melhores.
Melhores pessoas, melhor sociedade e melhor mundo. Por um mundo sem fronteiras!
Bom, agora imagino todos que estão
lendo pensando “uau, que experiência incrível”. E foi mesmo. Quem tiver
interesse, disposição e coragem não só pode, como deve ir. Foi surreal, pelo
menos para mim que não tinha sequer passaporte antes de ir! Mas, se vocês me perguntarem agora se eu faria
de novo, eu diria não! Mas, não? Como assim, depois de tudo isso que você falou?
Teve alguma coisa ruim lá? Posso afirmar com letras garrafais que lá não teve
NADA, absolutamente NADA ruim (um pouco de saudade de coxinha, empadinha e
açaí, e talvez o incômodo com o frio)! O mais cômodo, justo e honesto (afinal
eu fui mesmo) seria eu responder, SEM DÚVIDA, faria tudo novamente! Do ponto de
vista profissional foi o TOPO de minha vida até agora e de crescimento pessoal
foi o início de uma fase de muito entendimento. Mas, a minha ida deixou para
trás algo que eu acabei perdendo e que eu não abriria mão novamente!
Apresentando
o trabalho que foi menção honrosa na IV Jornada de la Asociación Española de
Antropología y Odontología Forense (AEAOF) y IX Reunión de la Sociedad de
Odontoestomatólogos Forenses Iberoamericanos (SOFIA) – 2017. Huelva –
Espanha.