Pressão militar e policial... Tortura... Censura aos meios de comunicação... Isso te lembra alguma coisa? Realmente espero que você pense “sim”. E sim, estamos falando da Ditadura Militar. Só para relembrar, foi um período que começou em 1964 com o atual presidente João Goulart (Jango) deposto para o início de um regime militar no Brasil e findou em 1985 com o movimento “Diretas Já”, dando fim ao bipartidarismo político.
Um dos momentos mais conturbados deste período foi a Guerrilha do Araguaia, que aconteceu entre 1972 e 1974, abrangendo o sudeste do Pará, norte do atual Tocantins e terras do Maranhão. Os guerrilheiros foram aos poucos se estabelecendo na região, sendo um total de 70 em 1972. Quando os tais foram descobertos pelos militares, teve-se início a guerrilha, sendo em 1973 o combate mais sangrento da história da mesma. Em 1974, já não existiam mais guerrilheiros na região.
De acordo com os dados da Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), dos 64 casos relacionados à guerrilha que foram analisados, 61 constavam no Anexo I da Lei 9.140/95 (o total de reconhecidos como mortos neste anexo é de 136 pessoas, o que salienta que boa parte dos nomes presentes possuíam relação com a guerrilha supracitada). Mas que Lei é essa? Que comissão é essa? Calma que eu já vou explicar.
A Lei 9.140, promulgada em dezembro de 1995, reconhece como mortas pessoas desaparecidas que participaram, ou foram acusadas de participar, de atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 (data que posteriormente foi ampliada para 5 de outubro de 1988, através da Lei 10.536/02). A Lei ainda determinou a criação da CEMDP para melhor averiguação dos casos de desaparecidos políticos, aprovando reparações indenizatórias e buscando localizar ossadas nunca entregues para sepultamento. Em 2004, através das Lei 10.875, os critérios de reconhecimento foram ampliados, passando a contemplar vítimas de conflitos armados com agentes do poder público e vítimas de manifestações públicas, além de falecimentos decorrentes de suicídio em virtude de sequelas psicológicas resultantes de atos de tortura ou na iminência de prisão.
Lembra quando eu falei que 136 pessoas foram reconhecidas como mortas? Pois bem, este reconhecimento foi imediato, assim que a Lei 9.140/95 foi promulgada. Como? Já existia um dossiê organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, com o apoio militantes dos direitos humanos, sendo este um resultado de mais de 25 anos de buscas. Muitas destas famílias já receberam as devidas indenizações. Mas até que ponto isto é suficiente para pôr fim a este período obscuro de suas vidas?
Outra comissão criada, mais recentemente, foi a Comissão Nacional da Verdade (por meio da Lei 12.528/11), que, em suma, tem o objetivo de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, para efetivar o direito à memória e à verdade histórica.
Pouco a pouco, caso a caso, a atuação de legistas e peritos foi desmentindo as versões divulgadas na imprensa da época. A realização de perícias, análise de fotos cadavéricas e de laudos de necropsia permitiu o esclarecimento de muitas mortes. Por exemplo, corpos de militantes até então mortos em confronto com a polícia possuíam marcas de tortura pelo corpo, entendendo-se que tais militantes não morreram nos confrontos, mas foram presos e torturados até a morte.
Mas cadê a Odontologia Legal nisso tudo?
Vanrell, ao falar sobre o campo de atuação da Odontologia Legal, a define como uma “disciplina que oferece à Justiça os conhecimentos da Odontologia e suas diversas especialidades”. Ademais, o Conselho Federal de Odontologia, na seção IV do capítulo VIII da Resolução nº 63, define, no artigo 54, os objetivos da especialidade.
Art. 54. Odontologia Legal é a especialidade que tem como objetivo a pesquisa de fenômenos psíquicos, físicos, químicos e biológicos que podem atingir ou ter atingido o homem, vivo, morto ou ossada, e mesmo fragmentos ou vestígios, resultando lesões parciais ou totais reversíveis ou irreversíveis.
Parágrafo único. A atuação da Odontologia Legal restringe-se a análise, perícia e avaliação de eventos relacionados com a área de competência do cirurgião-dentista, podendo, se as circunstâncias o exigirem, estender-se a outras áreas, se disso depender a busca da verdade, no estrito interesse da justiça e da administração.
Com estes refrescos para memória você já deve estar interligando as coisas. Uma das competências da CEMDP é a busca por ossadas de mortos e desaparecidos políticos. Para isso, em um primeiro momento, foi realizada a coleta de amostra de sangue dos familiares e, depois, priorizou-se a sistematização de informações acerca de possíveis localizações de cemitérios clandestinos. Neste quesito, atualmente a atenção está voltada para as ossadas encontradas em 1990 na vala clandestina do cemitério Dom Bosco, localizado no bairro de Perus, zona norte de São Paulo. Uma equipe multidisciplinar atua objetivando identificar as ossadas, um processo que tem contribuído para a sedimentação da Antropologia Forense no Brasil.
O odontolegista Marcos Paulo Machado, do IML do Rio de Janeiro, analisou um caso incomum na vala: mulher, jovem e com acesso a tratamento dentário, dada as restaurações de amálgama e a raiz incompleta do terceiro molar, indicando idade inferior a 21 anos. Este é apenas um dos exemplos de atuação da Odontologia Legal na análise de ossadas desta vala clandestina.
Dentre as dificuldades encontradas, destaca-se a divergência quanto à localização das ossadas, falta de treinamento específico para remoção das ossadas encontradas, pois em grande parte dos estados brasileiros tais ossadas foram removidas sem a presença de um perito no local, e indisponibilidade de documentação prévia para confronto.
Após muito trabalho, o Grupo de Trabalho de Perus (GTP) obteve identificação positiva de duas das vítimas, em 2018. Também merece ser salientado o Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), estabelecido em 2011, que enfrenta dificuldades como a falta de recursos financeiros e a extensão da região de trabalho (cerca de 7.000 quilômetros). As famílias ainda acreditam que houve uma “operação limpeza” por parte dos militares e responsáveis pelas mortes.
Desta forma, tem-se de um lado profissionais que trabalham dentro dos limites impostos e de outro famílias que sugerem pouca atuação e omissão na busca por resultados. Até que ponto o Estado brasileiro tem sido ambíguo, ao criar comissões, efetuar indenizações e incentivar a busca de ossadas ao passo que faz perdurar as resoluções da Lei da Anistia? Enquanto muitos responsáveis encontram-se impunes, as famílias buscam por respostas.
Tifany Shela Albuquerque Borba de Andrade
REFERÊNCIAS
VANRELL, J. P. Odontologia Legal e Antropologia Forense, 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan Ltda., 2019. 9788527735223.
MARTINS, D. A. B.; DE RESENDE MIRANDA, J. I. O COMPORTAMENTO DO ESTADO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AOS DESAPARECIDOS POLÍTICOS NA DITADURA MILITAR. Revista Direito em Debate, v. 23, n. 42, p. 99-120, 2014.
ROTTA, V. Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Acervo, v. 21, n. 2, p. 193-200, 29 nov. 2011.
ROCHA, J. S. A IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA FORENSE NA RESPONSABILIZAÇÃO DOS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE PRATICADOS NO BRASIL EM REGIMES AUTORITÁRIOS. Rev. Fac. Direito São Bernardo do Campo, n. 20, 2014.
Diário das Leis (diariodasleis.com.br)
Uma luta contra o desaparecimento : Revista Pesquisa Fapesp