Olá, pessoal!
Estavam com saudade de um post aqui no blog? Então foco aqui que estamos voltando em grande estilo! Vocês devem estar acompanhando no nosso instagram alguns trechos da entrevista com Dr. Alexandre Deitos, não é? Muitas das nossas últimas discussões surgiram a partir do que ele trouxe pra gente em sua entrevista - daí vocês tiram o quão enriquecedor foi esse momento.
E claro que a gente não poderia guardar esse material só pra gente, né? Pra quem estava curioso e ansioso pra saber tudo o que rolou, segue abaixo a entrevista IN-TEI-RI-NHA. Isso mesmo, na íntegra pra vocês, LAOL entrevista Dr. Alexandre Rafael Deitos, graduado em Odontologia pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Antropologia Forense pela UNIESP e especialista em Odontologia Legal pela ABO de Rondônia. Mestre e Doutor em Ciências Odontológicas pela Faculdade de Odontologia da USP e Perito Criminal da Polícia Federal coordenando a área de identificação de vítimas de desastres - DVI - da PF no Estado de São Paulo. Além disso, representante brasileiro do grupo de trabalho de identificação de vítimas de desastres da Interpol e, por fim, também professor da Academia Nacional de Polícia e outros cursos de pós-graduação em Ciências Forenses.
PARTE I: O caminho que levou à PF
LAOL: Hoje recebemos um convidado de grande relevância para Odontologia Legal e que possui um notório currículo. Gostaríamos de iniciar agradecendo sua presença e dizendo que você é muito bem-vindo nesse novo novo quadro aqui na nossa Liga.
Deitos: Muito obrigado pelas palavras. Inicialmente gostaria de agradecer ao convite feito pelas professoras Bianca e Laíse e agradeço a oportunidade de estar compartilhando meus conhecimentos com vocês.
LAOL: O prazer é nosso de te receber aqui. Então, para iniciar, vamos começar com uma pergunta que é uma dúvida de todos nós aqui da Liga e de alguns seguidores do nosso instagram. Como foi o seu processo de entrada na Polícia Federal (PF)? E, aproveitando essa pergunta, qual era o seu conhecimento prévio sobre a Odontologia Legal para entrar na PF e ainda, você lembra como foi esse processo de estudar, de concurseiro, quanto tempo você estudou para conquistar essa aprovação tão sonhada na Polícia Federal?
Deitos: Então, eu me formei na UFPR e lá tinha a disciplina de Odontologia Legal, mas ainda não era como eu vejo os currículos dessa disciplina atualmente. Eu tive um contato no IML, onde fizemos visita uma única vez também, mas basicamente eu me formei sem ter realmente a noção do que era a Odontologia Legal. Então eu ainda cliniquei por vários anos antes de entrar na polícia, por 7 ou 8 anos. Eu me formei no Paraná, mas sou do interior, de Campo Mourão, então eu me formei e voltei à minha cidade pra começar a trabalhar como dentista, onde fiquei por aproximadamente dois anos e depois fui para Rondônia, por questões de mercado de trabalho, concorrência, enfim… em virtude disso acabei indo pro Norte, mas para clinicar também. Só que foi lá que deu essa virada na minha da minha carreira. Eu comecei a vislumbrar uma saída, não da odontologia, mas da clínica diária, que eu considerava uma atividade muito penosa, muito desgastante para o dentista e eu comecei a avaliar as possibilidades, quando me veio essa questão da Odonto Legal, inicialmente por um concurso do Estado de Rondônia, não era PF. Ia ter um concurso para Polícia Civil de Rondônia e eu aproveitei esse momento e entrei num curso de especialização que abriu em Porto Velho e comecei o curso ainda antes do concurso, no qual eu já passei. A partir daí eu comecei a mirar mais nessa área de concurso até que finalmente eu consegui entrar na Polícia Federal. Resumidamente, seria essa a história.
Em relação aos estudos, meu processo foi de aproximadamente 4 anos de tentativa. Não no cargo de perito criminal, porque esse cargo, para a área de Odontologia Legal, veio surgir só em 2004 e eu vinha fazendo concurso pra PF desde o ano 2000, para outros cargos, que exigiam somente o diploma de nível superior, como agente de polícia ou papiloscopista policial federal, que têm uma base comum de direito, português, informática, enfim, exceto as específicas, comuns a qualquer cargo. A partir daí eu fiquei fazendo essas tentativas e no meu quarto concurso, quando abriu pra Odontologia, eu passei pra Polícia Federal, em 2004.
LAOL: Então você vinha fazendo concurso pra agente?
Deitos: Pois é, eu quando comecei a vislumbrar uma saída, eu queria, na verdade, sair da clínica e continuar na Odontologia, mas não havia concursos disponíveis na nossa área, para odontologista, ou de gestão em saúde, por exemplo. Eu acabei fazendo concurso pra ser gestor de saúde pelo Ministério da Saúde e passei, tanto é que antes da PF eu trabalhei 4 anos no Ministério da Saúde, na área de gestão. Então, fui vendo quais os concursos mais propícios que tinham na época e a minha vontade de entrar na área forense era grande, daí o primeiro caminho que você pensa é entrar na polícia, né? E os cargos disponíveis eram esses: agente, papiloscopista e escrivão, que não exigem formação específica, mas diploma de nível superior. Então eu tentei duas vezes para agente, uma vez para papiloscopista e no meu quarto concurso, foi quando abriu o primeiro na Polícia Federal para Odontologia, como perito, nesse eu passei.
LAOL: Estando na Polícia Federal, o que te motivou a pesquisar e trabalhar com dentes em sua pós-graduação?
Deitos: É, uma pergunta interessante. Quando eu fiz o meu mestrado eu estava trabalhando no Ministério da Saúde, então eu fiz o meu mestrado em Saúde Coletiva. Porque você vai estudar aquilo que você entende, né?! Você busca uma solução para um problema que você entende e que seja útil no trabalho. Como eu trabalhava na área de gestão em saúde coletiva, na Coordenação Nacional de Saúde Bucal no Ministério da Saúde, eu fiz meu mestrado voltado para a saúde coletiva avaliando o Centro de Especialidades Odontológicas no país todo, os famosos CEO, era a minha área que implantava os CEO no país, a gente precisava de uma avaliação dos serviços então eu juntei, “bom, eu vou fazer uma coisa que seja útil e que vai me ajudar no trabalho”.
Quando eu estava finalizando mestrado a Polícia Federal me chamou, porque não obstante eu tenha passado no concurso 2004 eles só me chamaram em 2009, 5 anos depois, nesse tempo eu passei em outro concurso, fiquei 4 anos no Ministério da Saúde e aí quando eu entrei na polícia eu fui entender como era o trabalho de um perito criminal em odontologia dentro da PF. Então, tendo em vista as nossas atividades, quando eu comecei o doutorado eu vislumbrei fazer uma pesquisa voltada a uma área que serviço necessitasse de uma resposta, que eu entendesse mais e daí vem essa questão de você estudar algo que seja útil, que seja uma solução forense e que favoreça não só você, mas a área forense em geral, no meu caso, a fazer esses exames de estimativa de idade nessa faixa de transição, como chamamos, de adolescente a adulto jovem, que é uma faixa bem complicada de se fazer esses exames.
PARTE II: A rotina pericial
LAOL: Então, Deitos, você falou que o que você aprendeu da Odontologia Legal na graduação não seria suficiente para sua aprovação no concurso, mas com relação a outros conhecimentos da graduação, de materiais dentários, propriedade do ionômero de vidro, por exemplo, você acha que esses conhecimentos serviram ou servem em alguma área na sua atuação na Polícia Federal?
Deitos: Veja, como perito criminal federal da área de odontologia eles podem servir sim, todo conhecimento que você tem pode servir. Eu não trabalho na área clínica e não eu fico manipulando ionômero de vidro, por exemplo, mas quando eu faço uma necrópsia, faço um exame em um cadáver ou esqueleto, eu tenho que fazer o odontograma e tenho que saber quais são os materiais que estão lá na boca do suposto desaparecido ou daquela pessoa que vai ser identificada. Então eu tenho que saber o que é amálgama, o que é uma resina, o ionômero, tenho que saber sobre diversos tipos de próteses, de materiais, para poder fazer corretamente. E talvez esse tipo de material possa ser um diferencial em uma identificação, por exemplo, porque a gente consegue identificar pela odontologia, né? E são essas diferenças de tratamento que a pessoa tem na boca - caso eu tenha uma informação de um dentista caprichoso, que fez uma uma ficha, um prontuário odontológico caprichoso, que anotou tudo que realmente tem na boca do paciente - se eu tiver essas informações, é possível identificar. Então é um conhecimento que eu posso utilizar, que pode ser muito importante, mas claro, não é um uma atividade que eu faça diariamente.
LAOL: Então, entrando nesse assunto da sua área de atuação, você já deu alguns exemplos, de identificação pela odontologia, mas poderia dar outros exemplos de áreas da odontologia que ainda hoje você atua? Algo que você acha que às vezes as pessoas não conhecem, mas que faz parte do seu trabalho?
Deitos: Antes de mais nada, há que se fazer uma diferença sobre cargos existentes na área forense, por exemplo, eu sou perito criminal da área forense da Odontologia, a professora Bianca é odontolegista; são cargos diferentes, não obstante os cargos atuem em áreas comuns, mas são cargos cuja atribuição tem algumas diferenças.
Então, enquanto perito criminal, dentro da Polícia Federal, eu consigo fazer diversos tipos de atividades que, de primeira mão, não são relacionadas à odontologia. Por exemplo, eu sou lotado em São Paulo, estou há quase 12 anos na polícia, lotado na capital, na Superintendência Regional de São Paulo, e as demandas de exame em SP são diferentes das demandas de exame aí na Paraíba, em Pernambuco... cada estado tem a sua demanda. Em São Paulo tem demandas que qualquer área de formação pode atuar, então especialmente lá, as áreas que eu atuo fora da odontologia é a área de Local de Crime (LC), quando se vai fazer Local de Crime de qualquer área: contra o patrimônio, contra a vida, contra o meio ambiente…, é uma área que eu atuo, não só no serviço fazendo exames periciais, mas também na docência, na Academia Nacional de Polícia também, nos nossos cursos de formação e cursos de especialização.
Uma outra área também que tem grande demanda em São Paulo é a de documentoscopia, que é uma área para perícia em geral e qualquer perito pode pode fazer. Então quando se vai fazer um exame de moeda falsa, um exame de carteira de identidade ou de motorista para saber se é falsa ou verdadeira, são exames que eu faço recorrentemente lá, porque tem muita demanda e esses exames são necessários. Agora voltando para nossa área, da odontologia, onde eu mais tenho atuado nos últimos anos é na Antropologia Forense, onde a gente analisa esqueletos, por exemplo, tentando fazer a identificação de pessoas desaparecidas, e também atuo na área de Identificação de Vítimas de Desastres (DVI). Porque hoje eu trabalho num setor de coordenação, nós coordenamos diversas atividades relacionadas a identificação das vítimas daquele desastre, então eu faço atividades de coordenação de grupos, mas se for necessário eu posso atuar diretamente no cadáver fazendo a identificação dele também, depende da quantidade de pessoas disponíveis naquele momento e depende do caso em si. Então a DVI é uma área que a gente utiliza muitos conhecimentos da Odontologia, não obstante a área seja muito mais ampla do que apenas a área da odonto, né? Por que nós vamos ter a fase de Local de Crime, a fase em que se fará o recolhimento dos corpos, a fase de entrevista com os familiares, a fase de IML e a fase da identificação. Outros exames que eu atuo também são relacionados a crimes de pornografia infantil. Porque dos crimes de internet, um dos que mais avançam é o de pornografia infantil. Então a gente trabalha em cima de imagens e vídeos, de crianças e adolescentes sendo abusados e vai depender do contexto a informação que você quer tirar dali; às vezes você quer identificar a pessoa que está fazendo a ação, o criminoso, que é um tipo de exame, outras vezes nós vamos fazer exames de estimativa de idade da vítima.
LAOL: Deitos, eu acho que é um pouco confuso para a maior parte da população entender quando determinada perícia é de atribuição da PF e quando ela é de atribuição da Polícia Civil (PC), da Polícia Científica daquele estado. Você mencionou local de crime, falou de documentoscopia, mas essas são perícias que também são realizadas nos órgãos estaduais, né? Então, você poderia falar um pouco sobre quando é que a PF é acionada e não a PC?
Deitos: Perfeita a pergunta e é importante realmente. Veja, a Polícia Federal vai atuar em crimes contra a União, em crimes federais. Tudo que não é crime federal é considerado crime comum, então crimes comuns são de competência estadual, são as polícias estaduais que estarão realizando os exames e os órgãos periciais das polícias ou os órgãos técnicos científicos, que podem não fazer parte da polícia também. Agora não é só essa definição que permite a entrada da Polícia Federal no caso ou não. Normalmente é isso, mas, por exemplo, em casos de repercussão vocês sempre estão vendo a PF atuando e por quê? Mesmo que naturalmente não seja um crime de atribuição da PF, lá diz que o Ministro da Justiça pode solicitar a entrada da Polícia Federal quando ele considerar que tal crime tenha que ter também a participação federal. Então normalmente nesses crimes de repercussão a gente acaba entrando também, é mais por uma requisição do ministro do que do que aquela definição dada pela lei.
Outro exemplo, crimes que abrangem mais de um estado, quando tem dois, três, quatro estados envolvidos, nesse caso a PF também já tem a atribuição de entrar, porque cada polícia vai atuar no seu estado e quem que vai fazer esse link geral e vai conseguir dar uma visão geral? É a Polícia Federal. Então tem algumas situações relacionadas a isso, mas no dia a dia, por exemplo a respeito do local de crime, vai depender. O local de crime na Caixa Econômica Federal (CEF) é a Polícia Federal que entra, porque a CEF é uma empresa federal, é uma estatal, assim como outras, Correios também, se for no Tribunal de Justiça Federal… então, tudo que for em espaço público Federal, a PF é quem tem essa atribuição, mas se um crime aconteceu na rua, na praça ou no mercado, é considerado crime comum, é a Polícia Civil quem vai atuar naquele local. Então tem essas nuances do dia a dia. Em casos de incidentes aeronáuticos, as próprias leis federais falam que os sinistros aeronáuticos são de atribuição federal, porém, não são em todos os sinistros que nós somos chamados, porque às vezes não existe a necessidade de entrar em um caso que não é um desastre em massa, por exemplo, agora o inquérito federal sempre vai estar correndo e sempre vai estar usufruindo dos laudos estaduais. É mais ou menos por aí, depende de muitas variáveis, mas é basicamente nesse guarda-chuva que a PF atua.
LAOL: Deitos, agora sobre a rotina da profissão em si, porque o vínculo com a Polícia Federal traz tanta instabilidade sobre seu local de moradia?
Deitos: É, essa pergunta é bem interessante, a palavra instabilidade me chamou atenção. Bom, a gente trabalha na Polícia Federal, então é um órgão nacional, e é exatamente por causa disso. Enquanto a Bianca é odontolegista do estado, as atividades dela são limitadas ao estado, a polícia federal, não obstante tenha uma superintendência em cada estado, muitas vezes não tem os profissionais necessários para cobri-lo, que é o caso na nossa área, por exemplo. Eu acho que a odontologia é um exemplo típico disso, porque na PF nós temos o cargo de Perito Criminal na área Odontologia, mas nem todos atuam na nossa área. Acredito que hoje nós devemos contar com cerca de dez dentistas em todo o território nacional, mas muitos trabalham em outras áreas, então na odontologia, recorrentemente, deve ter uns três trabalhando, mas que também não atuam exclusivamente na odontologia, como já falei, a gente pode fazer outras atividades e fazemos, uma vez que as demandas criminais nos exigem isso.
Por exemplo, agora em dezembro (29/12) caiu um avião com quatro pessoas aqui no Paraná e foi uma atribuição da Polícia Federal fazer o exame pericial, então…eu moro em São Paulo, mas eles me chamaram e eu fui atender a esse acidente ocorrido aqui no Paraná, por quê? Porque aqui no Paraná não tem perito criminal médico ou odontólogo que atenda a essa área da DVI. Então, outro exemplo, quando têm as escavações para buscar desaparecidos políticos na região Norte, no Araguaia, nós vamos até lá. Quando existe qualquer caso que demande conhecimento da nossa área, eles vão ter que deslocar um odontólogo ou um médico, então você vai ter que ficar viajando.
Teve um período de correição agora bem interessante na Polícia Federal, quem trabalha com polícia sabe, a nossa foi feita agora, e nisso você tem que fazer um relatório dos últimos 365 dias na polícia, tudo, todos os laudos que foram feitos, a quantidade, todas as atividades que você fez, as missões que você viajou, enfim, e aí eu me dei conta que no ano passado eu fiquei 181 dias fora de São Paulo, quer dizer, eu fiquei meio ano de pandemia fora. Então realmente é porque não existem pessoas com conhecimento necessário em todos os estados, e aí é preciso suprir essa necessidade viajando, ou também indo à Brasília, onde fui muito, para desenvolver atividades de gestão.
LAOL: Como já mencionado, você fez seu doutorado sobre estimativa de idade, com o Índice de Maturação do terceiro molar, não é isso? Você já teve alguma demanda específica dentro desse tema na perícia?
Deitos: Sim, sim. Quando eu faço exames antropológicos, exames voltados à Antropologia Forense e que eu encontro o esqueleto de um subadulto ou adulto jovem eu sempre estou utilizando esse método, eu sempre estou verificando esse índice, para saber, inclusive, se tá batendo com o que a gente entende que seja a idade estimada daquele indivíduo. Então toda vez que eu tenho um esqueleto nessa faixa etária eu lanço mão. Não que alguém pergunte ou que peça para eu usar, porque o perito pode usar os métodos que ele considera serem os mais relevantes e, enfim, ele tem autonomia científica para poder usar os métodos que ele queira usar, mas claro que eu vou tentar me basear por aqueles que sejam aceitos pela comunidade científica, desde que tenha sido uma pesquisa feita com a metodologia adequada, com uma estatística e uma amostra adequada, revisada por pares, tenha sido publicada numa revista internacional, ou seja, foi aceita pela comunidade científica internacional, é por aí que eu penso, então eu uso sim.
LAOL: Muito tem se falado a respeito das linhas neonatais, né? Elas são consideradas atualmente um registro de vida de um indivíduo indicando que ele nasceu, você já trabalhou com as linhas neonatais e o que acha da sua utilidade dentro de um contexto investigativo?
Deitos: Interessante, esse é um tema que a Polícia Federal ministra para os peritos também. Eu nunca tive um caso que eu tenha utilizado as linhas neonatais, mas elas são bem interessantes de você estudar, porque essa linha neonatal surge num período importante, na hora do nascimento daquela criança. Quais são as causas disso ainda não se sabe muito bem, se coloca como uma das causas possíveis o estresse causado pelo parto, em que naquele momento se cria essa linha e o esmalte que que foi segregado antes é diferente do esmalte que está sendo segredo depois desta linha. Então ela aponta, na verdade, que aquele feto nasceu e se tornou recém-nascido. Existem casos na literatura bem interessantes, porque por essa linha você pode saber se uma criança nasceu viva ou não. Os exames que são feitos nos IML, em um corpo que não se sabe nascido com vida, para saber se teve um minuto de vida ou não, é o chamado docimasia, que consiste em colocar o pulmão na água, se boiar é porque houve entrada de ar, então o indivíduo respirou, nasceu com vida. Mas se estivermos diante de um esqueleto, como fazer isso? Então as linhas neonatais são úteis nesse tipo de exame, saber se aquele esqueleto subadulto teve um período de vida, ainda que curto, ou não, porque a segregação desses tecidos minerais serão diferentes e ela é criada exatamente no momento do parto. Então são casos interessantes, que vão agregar na investigação, mas eu nunca tive um caso relacionado à linha neonatal para analisar.
LAOL: Agora gostaríamos de entrar em outro assunto, um que acaba sempre vindo à tona, né?! Que é sobre o período da ditadura militar e eu li que desde 2010 você participa de grupos que atuam na identificação dos desaparecidos políticos dessa época, eu queria saber se você ainda atua nesses grupos de identificação.
Deitos: Sim, desde 2010, eu entrei na polícia em 2009 e logo no ano seguinte eu já fui inserido nesta temática de identificação de desaparecidos de maneira geral, mas a temática dos desaparecidos políticos tomam uma questão mais emblemática, né? Os principais casos de desaparecidos políticos que a Polícia Federal tem atuado são aqueles que ocorreram na década de 70. Existem alguns contextos de desaparecimento, um deles é em relação àquela conhecida Guerrilha do Araguaia, onde aproximadamente 70 militantes desapareceram ou foram mortos naquele período e também tem um contexto em São Paulo, onde muitos desaparecidos e mortos naquele período de recessão foram enterrados sem documentação própria em diversos cemitérios em SP, onde procuramos eles hoje, um em relação à Vala de Perus, outro ao Cemitério de Vila Formosa.
Esses grupos de trabalho, que hoje não se chamam mais assim, antigamente chamavam Grupo de Trabalho Araguaia, voltado aos desaparecidos desta região, para onde viajamos de tempos em tempos realizando prospecções, realizando buscas e escavações visando a identificação desses desaparecidos; é um grupo que que teve uma atuação muito forte entre 2010 e 2015/2016 e nos últimos anos acabou tendo uma atuação menor, em virtude de serem priorizadas outras atividades de buscas de desaparecidos em outros locais também. O grupo ainda continua ativo, mas em outras áreas, como as de prospecção de enterramentos feitos por peritos, por arqueólogos e a partir de 2014 outro grupo passou a preponderar nessas buscas, foi o Grupo Trabalho Perus e aí sim estavam buscando por desaparecidos no contexto em São Paulo e na região Sudeste.
Esse grupo se iniciou em 2014, o nosso objeto de trabalho são 1.049 esqueletos que foram enterrados e foram encontrados em uma vala clandestina dentro do cemitério de Perus, em São Paulo, por isso o nome. O grupo já analisou as 1.049 caixas que continham os esqueletos, já foram coletadas amostras biológicas e já foram identificadas duas pessoas, desde 2014. Só que o trabalho ainda continua, porque o contexto que eles foram enterrados e exumados não foi em contexto controlado; ou seja, existia falta de documentação na entrada do cemitério e a exumação não foi feita por uma abordagem forense e isso teve como consequência a grande mistura de ossos, então a gente estima que em mais de 25% das caixas tenham mais de um indivíduo, com ossos misturados e é exatamente nessas misturas que a gente tem trabalhado agora, que é a parte mais complexa da atividade, dessas análises antropológicas. Mas claro, tem outros contextos menos midiáticos, casos pontuais pelo Brasil todo.
LAOL: Então, ainda nesse assunto a gente queria saber como é que ocorre essa identificação dos desaparecidos políticos. Se é mais ou menos desafiador que outros casos de antropologia, se tem algum caso surpreendente ou inusitado que você participou e queira compartilhar conosco.
Deitos: Veja, a identificação nesse contexto dos desaparecidos políticos é considerada um trabalho mais desafiador e por quê? Devido à falta de informações, ao lapso de tempo decorrido, inicialmente. Enquanto diversas ditaduras tiveram esses trabalhos de busca, de localização e identificação desses militantes que foram mortos nesses períodos, Chile, Argentina, muito próximo à redemocratização, o Brasil demorou basicamente mais de três décadas para começar esse trabalho, quase quatro décadas.
Então esse lapso temporal entre o ocorrido e o estado girar a roda para que a gente possa estar identificando foi muito grande, com isso se perdem informações, esse é o primeiro ponto. O segundo ponto é que não é fácil você obter informações oficiais daquele momento, informações dos órgãos que atuaram naquele período para que nosso trabalho seja facilitado e esse contexto é muito complexo porque isso se uniu, na realidade, à política de desaparecimento que é comum ainda hoje no Brasil, porque é difícil ter base de dados confiáveis para que se possa realizar essas identificações, é difícil ter relação entre órgãos diferentes. Nós não temos uma base que possamos acessar dados dos desaparecidos ainda hoje, então isso faz com que o trabalho seja muito difícil.
No contexto dos grupos que eu trabalhei, nós atuamos em duas frentes de trabalho principais. Primeiro, uma frente denominada ante-mortem, que são pessoas dedicadas à busca de dados biológicos, de informações junto aos familiares ou instituições, então são grupos exclusivos que fazem essa prospecção de dados dos desaparecidos que nós procuramos. Na outra ponta, o chamado grupo post-mortem, que é o grupo que trabalha com os esqueletos, que faz as análises antropológicas, que pegam todas as características dos esqueletos, desde o inventário dental, ósseo, patologias, tipos de trauma presentes, perfil biológico, as estimativas de idade, sexo, estatura, ancestralidade e aí pegando dados ante-mortem e post-mortem a gente tenta cruzar e aí sim, através dessa comparação de dados, buscar essas identificações. Nós fazemos uma triagem, para tentar aproximar os dados e a partir da triagem, refinamos junto ao exame de DNA, pois são desaparecidos que não têm dados ante-mortem robustos, nós temos muitos dados subjetivos e, muito mal, fotografias. É um trabalho muito desafiador, nós trabalhamos na Vala de Perus há 6 anos e ainda temos muito trabalho pela frente.
Você me perguntou de um caso emblemático e eu posso citar um caso que marcou muito a minha carreira, que foi a exumação do ex-presidente Jango (João Goulart), que foi o presidente da época do Golpe Militar, foi ele quem foi tirado do posto de presidente e foi exilado, ele morreu no exílio, na Argentina, estava de férias lá, mas ele morava no Uruguai. Então seu corpo saiu da Argentina, foi para o Uruguai e não foi feita necropsia. Saiu do Uruguai, entrou no Brasil e foi enterrado, sem necropsia. Daí 34-36 anos depois foi solicitada a exumação dele, eu tive a oportunidade de participar desse caso, foi uma grande operação, buscamos seus restos mortais, levamos para Brasília e lá fizemos todos os exames necessários: antropológicos, genéticos, toxicológicos, todos os exames necessários para responder à pergunta: “do que ele morreu?". A investigação questionava se havia tido algum tipo de intoxicação por veneno, naquela época muitos líderes políticos foram mortos assim, a gente buscava essa resposta. Então, esse foi um caso emblemático e que eu considero muito importante na minha carreira.
LAOL: Ainda nesse assunto, só para a gente finalizar, após a identificação desse desaparecido político, qual a finalidade desse processo para a justiça ou para a sociedade ou para conjuntura atual?
Deitos: Ótima pergunta, então, o objetivo é para todos, para os familiares, para a sociedade. O Brasil, na verdade, foi obrigado a tentar resolver essa questão dos desaparecidos políticos. Porque, o que aconteceu, o Brasil teve uma redemocratização diferente de outros países, aqui houve a chamada lei da anistia, em que para que ocorresse essa redemocratização do país, legalmente em 1985, foi imposta esta lei, ou seja, ninguém seria condenado por tudo que passou, nem de um lado e nem de outro. Então devido a isto esse assunto foi sendo esquecido, deixado de lado por muito tempo. Até que houve uma coordenação no âmbito internacional, pela OEA, jurisdição que o Brasil é signatário, ou seja, tem que seguir as decisões dessa instância transnacional, e só a partir de então, de 2010, nós fomos obrigados a tentar resolver. E foi aí que a Polícia Federal foi instada a trabalhar, foi uma obrigação legal.
Então a gente deve isso à justiça, à sociedade, mas especialmente aos familiares. Porque aquela pessoa que tem um familiar desaparecido é uma pessoa que vive em luto psicológico permanente, essas pessoas alteram toda a sua vida em função dessa busca, dessa resposta. Muitos nem acreditam sequer que a pessoa está morta. Então a gente deve responder a essas pessoas, mas dando resposta aos familiares estamos respondendo à sociedade e à justiça também. Muito se fala que se buscam os familiares por aspectos indenizatórios, mas não se trata mais de indenização, porque essa questão foi resolvida há um tempo atrás. Todos os desaparecidos políticos são considerados, pela lei, como mortos e todos eles tiveram suas indenizações pagas, então hoje realmente não se trata disso, trata-se de uma resposta para que os familiares possam seguir suas vidas. Como eu disse, identificamos duas pessoas, dentre as 1.049 caixas, daí posso ser perguntado “não é pouco?”, quantitativamente pode parecer pouco, mas qualitativamente é muito significativo. E é essa resposta que motiva o nosso trabalho.
PARTE III: O trabalho enquanto representante da Interpol
LAOL: Deitos, agora falando um pouquinho sobre a Interpol, eu acho que todo mundo aqui está ansioso para saber isso, queria que você falasse um pouquinho o caminho que você trilhou até chegar lá.
Deitos: Muito bem, antes de mais nada eu quero falar que eu não trabalho para Interpol, eu represento o Brasil na Interpol, eu trabalho para Polícia Federal, hoje eu estou representando o Brasil lá, amanhã eu posso não estar, mas continuo sendo perito criminal federal da Polícia Federal. Então, a área que eu mais tenho atuado hoje, não só na questão operacional, mas também de gestão, produzindo minutas de portarias federais, é a DVI. Então essa área surgiu na Polícia Federal, a semente dela, foi dada desde que houve o acidente com o avião da Air France em 2009, em que o avião caiu em águas internacionais com pessoas de mais de 30 nacionalidades a bordo, nessa situação a Interpol se colocou à disposição do país para ajudar a desenvolver o caso e a polícia brasileira aceitou. Então a partir daí nós vimos como a Interpol trabalhava, como o órgão ajudou à PF e as polícias parceiras. Então quem foi o idealizador disso foi o Perito Criminal Federal Carlos Eduardo Palhares, que trabalhou no início da criação dessa área DVI, antes as polícias trabalhavam sem muito protocolo, sem compreender quais são as fases de um processo de identificação oriundo de um desastre em massa, porque, por exemplo, quando se pensa em identificação, nesses casos, automaticamente muita gente pensa em IML, mas não é só isso, o IML compreende apenas uma das fases, existem muitas outras e todas são importantes.
Deu-se então a criação e o crescimento dessa área e eu trabalhei com o Palhares desde o início nisso, tanto operacional quanto na capacitação de colegas. Foi uma área que foi muito demandada na época da Copa do Mundo e das Olimpíadas, então eu trabalhei, especialmente, no treinamento das equipes em diversos estados e a partir daí, com o ganho de conhecimento da área, as pessoas começam a te chamar para participar de um grupo de trabalho aqui, um grupo de discussão lá e naturalmente surgiu a possibilidade de me indicar para representar o Brasil lá na Interpol, antes de eu entrar, em 2016, quem assumia esse papel era o próprio Palhares, ele precisou sair e surgiu essa oportunidade. Então hoje eu represento o Brasil na Interpol na área DVI, importante falar isso, porque existem várias representações em outras áreas forenses. E por que a PF? Porque quem representa a Interpol no Brasil é a Polícia Federal e somos vários profissionais cedidos ao grupo, e não só peritos, eu sou cedido na área DVI e atuo aqui, mas outros profissionais trabalham na sede.
LAOL: Você mencionou os casos reais de DVI que a polícia atuou e aí nós gostaríamos de saber, como foi visto pela Interpol o trabalho desenvolvido no caso Brumadinho?
Deitos: Brumadinho foi um caso emblemático, porque a gente participa de diversos casos de desastre, mas nenhum é igual ao outro, né? Veja, a gente divide o processo DVI, enquanto coordenação, em quatro fases: local de crime, fase ante-mortem, fase post-mortem e uma quarta fase de comparação de dados visando a identificação. Em alguns desastres a gente atua mais fortemente em uma ou outra fase, as demais ficam a cargo de outros órgãos, mas em Brumadinho foi um caso super complexo, então nós participamos de todas as fases, desde o primeiro contato, de levantamento de recursos humanos e materiais, recrutamento de equipes, profissionais trabalharam na chamada “zona quente”, onde os corpos estavam; na fase ante-mortem a gente quem desenvolveu os questionários aplicados às famílias a fim do recolhimento das informações, tínhamos peritos no necrotério fazendo as fotografias, tomando conta da cadeia de custódia de tudo e oferecendo informações para a equipe de comparação. Ou seja, trabalhamos no pacote completo. Brumadinho foi um caso real em que a PF trabalhou em todas as fases e mais, onde foi possível aplicar o protocolo Interpol. Realmente foi um marco, onde a gente provou que o protocolo funciona, não só em casos pequenos, mas em grandes casos, como esse, de 270 vítimas.
LAOL: E como foi a experiência de trabalhar com as olimpíadas aqui no Brasil?
Deitos: Foi bem interessante. Como falei anteriormente, trabalhamos muito com capacitação e treinamento das equipes para essas situações de grandes eventos, grande circulação de pessoas, e pessoas estrangeiras, em um curto espaço de tempo. Então tivemos um forte trabalho de prevenção, para que não acontecesse nenhum desastre e também na fase de planejamento e preparação, o que é isso? Deixar tudo preparado para caso acontecesse algum desastre. Recursos materiais e humanos já deslocados e preparados, de prontidão. Foi uma experiência muito rica, porque são nesses momentos que nós conseguimos treinar as pessoas, porque não aconteceu nada lá, mas todo esse preparo não se perde, ele se espalha para o nosso dia a dia e bem do serviço.
LAOL: E agora para gente encerrar eu queria fazer uma última pergunta que é: levando em consideração toda a sua trajetória na Polícia Federal, qual caso você considera mais diferente, mais inesperado que você já participou e que você possa compartilhar com a gente?
Deitos: Eu acho que todos os casos que a gente trabalha a gente tenta trabalhar da melhor maneira possível, sejam os de repercussão ou não. Eu considero alguns temas, não sei se casos especificamente, mas o tema da identificação de pessoas desaparecidas é um tema muito desafiador, acredito que não só para PF. Todos os casos, mesmo quando não conseguimos identificar pessoas, mas conseguimos excluir uma identidade, são de muita importância. Outro tema que eu considero muito desafiador é a respeito dos casos de pornografia infantil, de pedofilia. Esses são bem desafiadores pela sensibilidade do tema, porque a gente se aproxima muito, humanamente, das vítimas. Então, esses temas marcam, são desafiadores, mas a gente tenta trabalhar em qualquer um deles com a mesma dedicação.
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E aí, gente? Vocês gostaram? Não sei se a gente continua chamando de entrevista ou se já podemos chamar de aula, muito bom, né? Muito aprendizado! Gostaríamos, mais uma vez, de agradecer ao Deitos pela oportunidade que ele nos deu e reforçar que foi um prazer recebê-lo em nosso quadro.
Continuem atentos que nossa Liga não para. Em breve traremos mais convidados e esperamos sempre contar com a participação de vocês. Acompanhem no nosso instagram. Até a próxima!
Edição: Tainá Falcão
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