Olá pessoal! Fazia um tempo que a gente não entrevistava ninguém né? Tivemos a oportunidade (e o privilégio) de conversar com um dos maiores nomes do Direito Médico, Odontológico e da Saúde no Brasil, o Dr. Marcos Coltri!
O bate-papo em formato de entrevista foi super proveitoso e com linguagem acessível a todos os nossos ligantes. Não poderíamos deixar de compartilhar esse conhecimento com vocês também né?
Então sinta-se partícipe do momento, pegue seu cafezinho e saboreie-o com essa leitura!
Laura: Eu sou Laura, queria reiterar mais uma vez que é um prazer ter você aqui. Não só as professoras, como nós, acadêmicos, estamos honrados de ter você aqui. Quem vai conduzir a entrevista vai ser eu e Joelmir. Primeiro, queria apresentar para todo mundo um pouco do seu vasto currículo, então, Coltri é advogado com atuação exclusiva em direito médico e da saúde, especialista em Responsabilidade Civil na área da saúde pela FGV-SP; pós-graduado em Direito Médico e da saúde pela universidade Barão de Mauá, coordenador de curso de pós-graduação em direito médico e hospitalar da Escola Paulista de Direito, coordenador adjunto do curso de pós graduação em Direito Médico do IPEBJ, presidente da comissão de direito médico e odontológico de Santana-SP, vice-presidente da associação brasileira de Direito da Saúde, Docente convidado da pós-graduação em odontologia legal pela FORP-USP, docente convidado da pós-graduação em Odontologia Legal da ABO-GO e especialista em responsabilidade civil profissional para médico, cirurgião-dentista, hospital e laboratório. Então, vou começar fazendo as perguntas, e primeiro vou perguntar: como os conhecimentos técnicos científicos adquiridos pelo mestrado em Odontologia Legal, vem contribuindo para sua prática jurídica?
Coltri: Olá, Laura, Joelmir, amigos aqui presentes, ligantes, professoras, é uma satisfação estar aqui com vocês. Essa pergunta Laura é muito interessante, pois não podemos deixar de comentar a respeito do que seja um mestrado e diferenciá-lo da especialização. O mestrado é um programa de pós-graduação que caminha no sentido mais de pesquisa e estudo, e a partir desse estudo buscar uma possível aplicação prática para aquilo que está sendo estudado. Então, quando a gente caminha no sentido de uma em mestrado, a gente caminha para uma área de pesquisa e docência. Quando falamos da especialização, essa área é voltada primordialmente para prática, então, é aquilo que eu vou adquirir esses conhecimentos para utilizarmos na vida prática, no caso do Cirurgião-dentista, dentro da odontologia Legal. Eu não sou Cirurgião-Dentista, sou advogado, mas eu posso cursar o mestrado, justamente porque o mestrado não habilita para a prática profissional, o mestrado é mais pesquisa e docência, para aquilo que posso falar, minha área seria mais a parte voltada para deontologia ou para os aspectos jurídicos da profissão. Então, o mestrado ele ajuda muito nessa perspectiva, e como no mestrado a gente acaba tendo contato com colegas que também estão mestrando, desenvolvendo outros tipos de pesquisa, temos um ganho muito grande, primeiro porque a gente aprende várias formas de pesquisa, um vai buscar uma área de estudo mais técnica, eu, como não sou Cirurgião-Dentista, vou buscar uma área voltada mais para decisões judiciais, um pouco mais voltado então para o campo jurídico, que tem uma revisão de literatura um pouco mais aprofundada do que às vezes um outro colega. Então veja, que o ganho não é sobre apenas o que está sendo pesquisado, mas também a forma de se pesquisar, que há várias formas de se pesquisar, embora no final todas recebam o mesmo nome, dissertação de mestrado, há várias formas de se chegar nessa dissertação de mestrado. E na especialização também acho importantíssimo mencionar, o quanto cursar uma especialização em Odontologia Legal é importante, essa eu não poderia fazer, tecnicamente até poderia, pois é um curso de pós-graduação, porém não conseguiria cumprir os créditos, mas em tese também conseguiria fazer essa especialização, mas na prática isso acaba sendo inviável e impraticável. Mas o que eu sugiro, então, para quem gosta de Odontologia Legal, é que concilie esses dois mundos, a especialização e o mestrado, por questão de eses diferentes de um mesmo campo de atuação, e o que isso me deu na prática: como eu não fiz especialização, pelas razões que já falei, mas eu dou aula em um curso de especialização de Odontologia Legal, eu aprendi muito também, com os especializandos em Odontologia Legal, muitos hoje já especialistas, que é aplicação prática do que se vê na universidade de forma muito embrionária ainda, a Odontologia Legal ainda é muito embrionária na graduação, mas quando a gente vai para vida prática eu costumo dizer assim para os alunos: não há só um ato clínico odontológico que não tenham um ato de OL. não existe. Para cada ato clínico, qualquer que seja a especialidade, eu tenho no mínimo um ato de Odontologia Legal. Um exemplo para ser bem simples e direto, quando a gente diz eu faço HOF, você tem que fazer prontuário, então para o seu ato clínico de harmonização, você tem o ato de Odontologia Legal, que é a elaboração do prontuário. Ah eu faço implante, para você fornecer informações ao seu paciente relacionadas a hipóteses de tratamento, para você obter então o consentimento do paciente, para você saber que pode fazer isso no seu paciente, para você cumprir com seu dever de informação, para que você possa fazer o implante no seu paciente, você usa a Odontologia Legal. Então, quem acha que não usa a Odontologia Legal na prática clínica-cirúrgica, não tem a menor noção do que está falando, porque a especialidade mais usada, independente do que vai ser feito depois, é a Odontologia Legal, porque para cada ato clínico-cirúrgico, a gente tem no mínimo, aí eu estou sendo bem resumido mesmo, um ato de Odontologia Legal, se isso não for suficiente para despertar o interesse dos graduandos e até mesmo dos profissionais, eu não sei mais como seria a para demonstrar a importância da Odontologia Legal, que certamente é a especialidade, para o exercício profissional como um todo, mais importante, por essa razão que eu falei, sem desmerecer nenhuma outra, não é esse o ponto não, não é comparado, é que às vezes você não utiliza técnica de implante, se você fizer endodontia, talvez uma coisa não interfira na outra, talvez tenha um básico em comum, mas uma não interfira na outra, mas Odontologia Legal independentemente delas vai ser empregada todos os conceitos vindos do estudo dos conceitos dos deveres da deontologia profissional. Então é importantíssimo conciliar e continuar o estudo em Odontologia Legal, seja ao nível de especialização ou no âmbito de um mestrado e até mesmo doutorado, me ajudou muito o contato com os Cirurgião-dentista, dando aula na especialização, e os colegas do mestrado.
Laura: Verdade, nossa realmente, se você parar para analisar a Odontologia Legal é a base de tudo. Agora Joelmir vai prosseguir com a próxima pergunta.
Joelmir: Boa tarde professor Coltri, é um prazer estar conversando com o senhor hoje esses temas tão importantes. E, dando continuidade às perguntas da tarde de hoje, sobre a questão da resolução do CFO, 230/2020, a gente tem uma pergunta para falar com o senhor, sabe-se que cabe ao conselho nacional da educação a formação acadêmica de graduandos e pós-graduandos, mas como o cirurgião-dentista deve praticar atos profissionais que sejam pertinentes à Odontologia, o CFO, ele poderia atuar nos espaços, naquelas lacunas deixadas nas normas jurídico-legais a fim de garantir nè, a questão da ética profissional do CD, para além do strictu sensu, e qual sua percepção jurídica a respeito dessa situação?
Coltri: Amigo, Boa tarde para você também, Joelmir é nome de jornalista famoso
Joelmir: Obrigado!!
Coltri: Joelmir, você é CD ou será CD? é uma satisfação falar contigo, a respeito dessa questão da regulamentação da profissão, a gente tem que, pelo o que está na nossa constituição, cabe à união regulamentar as profissões, seja o Direito, a Odontologia, a Medicina, a Engenharia, enfim, todas as profissões que possuem a regulamentação, essa regulamentação deve ser feita pela união. O conselho tem função principal de fiscalização, se a gente for buscar a origem dos conselhos, de Odontologia, de Medicina, a OAB, os conselhos eles tem relação bem lá na antiguidade com as procurações de ofício, que eram as “instituições” que fiscalizavam a prática de uma determinada profissão, se a gente considerasse desde de os primórdios, isso foi passando claro ao longo dos tempos, e hoje o conselho tem essa função principal, mas também tem uma função secundária, de disciplinar a profissão, que não se confunde com regulamentar, a regulamentação é pela lei, mas dentro da regulamentação dada pela lei, os conselhos disciplinam a prática dos atos profissionais. Então veja que os Conselhos Federais e Regionais de Odontologia, possuem funções muito importantes, fiscalizar os profissionais e disciplinar essa prática. O que a gente às vezes percebe, é que se espera que a lei, que é um instrumento de regulamentação da profissão, traga tudo detalhadamente a respeito daquela profissão, ou seja, a gente espera que a lei diga exatamente tudo que o Cirurgião-dentista pode fazer, que o advogado pode fazer, que o médico pode fazer, e isso é simplesmente impossível, primeiro que não dá para colocar em um papel tudo o'que um CD pode fazer, tudo o que um médico pode fazer, tudo o que um advogado pode fazer, e assim por diante, segundo, que o exercício profissional e essas profissões, essas prestações de serviços, são muito dinâmicas, elas vão encontrando outros meios e outros caminhos, e a gente tá vivenciando justamente esse tempo, com a pandemia surgiu uma questão importantíssima para todas as profissões, o exercício da profissão por meio de vídeo, ai a gente tem a Teleodontologia,a teleadvocadia, a telemedicina, que é as prestações desses serviços ou a prática dessas profissões a distância. Então veja como é constante. Como é que a gente poderia ter uma lei antes da pandemia disciplinando?! Então agora ainda que a gente tem uma lei falando sobre isso, será que quando sairmos da pandemia essa lei vai continuar com o mesmo espírito do que é nesse momento?! Por que nesse momento a ideia ainda é, embora bem menos do que foi há algum tempo, é permitir uma facilitação do acesso: seja no ensino ou seja no exercício dessas profissões. Por isso, o telensino, as teleaulas ou, enfim, você pode até dar outro nome, mas continua sendo teleaula, pois é uma aula a distância. Isso foi facilitado, isso foi aceito. Talvez daqui a um tempo não seja. Então veja como é a coisa, como a prática é muito dinâmica. E a lei não vai conseguir contemplar tudo. Então quando a gente diz assim: será que a lei tem brecha? Eu te digo com absoluta certeza: Sim! Todas têm. Todas. De todas as profissões, justamente porque não dá para colocar. Falando da Odontologia então, a lei nº 5.081, com todo respeito, ela é muito ruim. Pois ela passa uma impressão muito, muito, muito errada sobre aquilo que ela quis dizer. Ela diz que o cirurgião-dentista pode fazer aquilo que ele aprendeu na faculdade, na graduação e na pós graduação. Quer coisa mais vaga do que isso?! E aí a gente fala e eu coordeno cursos em São Paulo, em Ribeirão Preto, em especializações de direito médico que cirurgiões-dentistas cursam esses cursos de pós-graduação, fazem esses cursos de pós-graduação porque eles podem fazer. Ah, então o cirurgião-dentista, como ele adquiriu esse conhecimento na pós-graduação ele pode trabalhar com direito odontológico? Claro que não, pois não é formação! Então veja como uma lei embute uma ideia errada na cabeça de quem está lendo, porque não é simples assim. O que permite a prática da profissão é o que a gente aprende na graduação. E às vezes a gente nem aprende. Hoje é muito fácil discutir a harmonização e dizer: se você não teve na graduação então você não pode fazer. Então vamos lá, falar dos outros é sempre muito fácil, agora eu vou falar de mim então. De mim não, porque eu não vivenciei nessa perspectiva esse tema. Mas vamos voltar lá em 1988 - já era nascido, mas não era advogado. Em 1988, em 5 de outubro a gente teve a promulgação da nossa atual constituição federal. Então imagina um advogado que foi formado em 87, vem uma constituição completamente diferente, completamente não, mas bastante diferente. Trouxe, por exemplo, um remédio constitucional que a gente chama de Habeas data, que não existia até então. Será que o advogado formado em 1987 poderia fazer o Habeas data a partir da constituição de 1988 ou não?! Se levar em consideração a leitura literal do que consta na lei nº 5.081 da Odontologia e transportasse isso para advocacia ele não poderia fazer. Porque? Porque ele não viu o Habeas data na faculdade, pois não existia! Então veja como: se fosse estabelecer o que o advogado poderia fazer ele teria que fazer o curso de direito de novo, pois aquilo não tinha. Aí mudou, desse tempo de 1988 para cá, mudou código civil, mudou código de processo civil, mudou parte geral do código penal, surgiram novas leis… estamos aqui conversando e está surgindo leis. Ou seja, quando eu me formei não tinha muito dessas coisas, então eu não posso fazer essas coisas?! Veja que essa percepção de só fazer aquilo que se aprende na graduação não se sustenta. Não é verdadeira. E isso não responde a todas as nossas perguntas mesmo - no caso agora voltando para a Odontologia. Então a gente precisa na verdade identificar, o que seja a prática na Odontologia. Ou seja, na verdade, ao invés de ampliar a discussão para colocar tudo que pode eu sugiro inclusive o contrário: reduzir. Para ter como dizer: o que o cirurgião-dentista faz? O que o cirurgião-dentista cuida? Ele cuida disso, disso, daquilo e daquilo outro. É isso! Agora os procedimentos eu não posso fixar, porque eles vão mudar, eles vão ser atualizados. E assim a ciência ou a profissão evolui. E as pessoas precisam estar preparadas e treinadas para fazer aquilo com conhecimentos básicos. Quando eu discuto, por exemplo, harmonização facial, é muito errado discutir a especialização. É preciso discutir a base para o exercício daquela especialização. E as bases são comuns. As bases devem ser comuns. É por isso que o advogado formado em 1987 poderia fazer Habeas data, pois ele já tinha a base - embora ele nunca tivesse visto aquilo na graduação. É por isso que quando mudou o código de processo civil e eu já era formado eu posso continuar fazendo porque tenho a base. Então às vezes é dizer o mínimo para dizer o que seja suficiente de exercício profissional. E não tentar ao contrário disso, tentar preencher lacunas, pois sempre vai ter lacuna. Sempre. E aí, falando mais especificamente sobre as resoluções de harmonização, eu vou me permitir esse comentário, mas isso é só uma opinião, o Conselho Federal de Odontologia foi praticando atos assodados atrás de atos assodados. Primeiro ele divulgou uma resolução dizendo que estava liberada a prática de harmonização, sem ter todo cuidado suficiente para estabelecer limites. Isso foi em 2019. Em 2020, o conselho restringiu a prática de alguns atos. Em 2021, o conselho passou a punir as pessoas que não estavam seguindo aquela resolução de restrição de 2020. Então veja como é frágil esse tipo de construção às pressas, na tentativa de dizer que estava autorizado ou não autorizado. Primeiro o conselho diz em 2019 que pode fazer harmonização, mas em 2020 diz que dentro da harmonização não se pode fazer determinadas coisas. Só que quem começou a fazer, não entende porque não pode mais, pois na primeira resolução não proibia que fizesse as coisas. Perceba como a dinâmica precisa ser compreendida. O conselho diz: pode fazer e os cirurgiões-dentistas começam a fazer, mas quando o próprio conselho diz que tal coisa não pode mais, gera uma insegurança. Essa insegurança, isso precisa ser dito, foi causada pelo conselho, pelo conselho federal de Odontologia. A resolução, salvo em engano, nº 198 que fala da harmonização foi publicada só com a assinatura do presidente. Ela não tinha sequer passado pelo plenário do conselho federal de Odontologia. Ou seja: não era caso de urgência - porque regulamentar a harmonização facial não era caso de urgência -, e não precisaria ter sido feita dessa forma. Quando ela foi lançada no maior congresso de Odontologia da América Latina, no CIOSP, quem queria fazer harmonização falou: esse é o caminho. Eu vou fazer tudo da harmonização facial agora, porque a resolução não proíbe nada. Aliás, a resolução traz uma ideia até de ampliar mais do que já se tinha antigamente. Então ele deu mais “poderes” ao cirurgião-dentista. Um ano depois o conselho corrige o erro, mas veja: é uma correção de erro de algo que nem deveria ter acontecido. A própria resolução nº 198/2019 já poderia ter trazido aquilo que posteriormente foi proibido pelo conselho pela resolução nº 230/2020. E depois quando o conselho viu que não conseguia mais controlar isso, publicou uma nova resolução, que é a suspensão cautelar, que diz: se você não cumprir o que está na resolução nº 230/2020, vou te suspender cautelarmente. Vocês conseguem entender o processo dessa discussão toda, que tem como origem não o cirurgião-dentista individualmente falando, mas sim o próprio conselho federal de Odontologia. Ele deu asa e depois quis cortar a asa. Só que o conselho deu asa sem a necessidade de urgência da publicação da resolução nº 198/2019. É diferente, por exemplo, sobre a publicação da resolução sobre teleodontologia. Essa se alguma coisa sai errado, a gente tem que aceitar porque foi naquele momento que o mundo virou de cabeça para baixo e teve que disciplinar alguma coisa sobre teleodontologia. É compreensível que haja erro, é compreensível que haja equívoco, mas a resolução nº 198/2019 não, pois não era um quadro diferente, não era um quadro de emergência.
Então Joelmir, respondendo a sua pergunta, eu fiz toda essa criação aqui para poder dar essa dinâmica de que às vezes tentar preencher essas lacunas não é a melhor forma de disciplinar - essa é a função dos conselhos - o exercício profissional. Não é a melhor forma, tanto que a OAB não faz tantas normas buscando isso, a gente tem uma lei que diz o que a gente pode fazer e essa lei tem sobre o ponto de vista do que a gente pode fazer não chega a ser de três artigos. Justamente porque ela traz conceitos de assessoria e ser defensor, é isso que o advogado, no ponto de vista jurídico, é isso que pode fazer, pronto. Agora se esse exercício vai ser online ou presencial é a prática daquele ato que está previsto na norma. Então Joelmir, em alguns caso a gente tem que disciplinar, como foi o caso da teleodontologia, precisa sair alguma coisa porque é um quadro diferente, mas para o dia a dia é muito mais o que é mesmo a Odontologia, e isso não vai estar em lei nenhuma de forma tão clara, do que essas discussões do que o conselho diz. Veja, o conselho é bem volátil, pois em um ano ele disse que podia tudo e depois disse que algumas coisas não podiam. Isso não é uma boa prática, do ponto de vista jurídico, para o exercício profissional. Não vejo dessa maneira. O que eu acho é que todo conselho deveria ter mais força política para pleitear junto com os nossos membros do congressos, como deputados e senadores, uma melhor regulamentação da prática por meio de lei, isso sim é regulamentação. Mas aí entra aquela história: como o congresso não faz, eu vou fazer do meu jeito aqui e aí a gente tem esse tipo de situação, sem contar conflitos com outras profissões. A gente nunca viu tanta discussão entre conselhos profissionais da saúde como a gente tem visto nos últimos 10 anos. É medicina brigando com a Odonto, a Odonto que briga com Fisio, Fisio que briga com a medicina, que briga com a Enfermagem, que briga com Terapia Ocupacional, é todo mundo discutindo. Por que?! Justamente porque os profissionais cresceram e a nossa legislação não tem evoluído para dar o mínimo de segurança jurídica para todos. E aí os conselhos preenchem as lacunas, cada um a sua melhor forma e a uma outra profissão se sente incomodada com isso e nós temos as disputas judiciais entre conselhos também. Veja que o cerne é o mesmo: falta de uma boa regulamentação de cada uma das profissões.
Joelmir: Tá bem, professor. Entendemos. Muito obrigado.
Laura: Com essa fala agora, veio uma pergunta: caso a gente tivesse essa especialização da harmonização facial bem regulamentada bem do início, a gente teria uma grande diminuição dos casos de embate, principalmente entre o conselho de medicina e o de Odontologia, né isso?!
Coltri: Difícil dizer. É que assim, se a resolução fosse mais bem feita, fosse feita com - eu vou usar uma palavra um pouco mais forte aqui, mas é dentro do contexto que estamos falando -, se ela fosse feita com mais zelo e com menos pressa, a primeira, estou falando da resolução nº 198/2019, a gente não tivesse tantos problemas entre conselhos. Mas o que seria importante também e essa é uma função do conselho, a forma como a mensagem chega ao cirurgião-dentista. Então quando o conselho federal de Odontologia publica resoluções dizendo “fica autorizado”, o cirurgião-dentista que quer fazer aquilo não lê mais nada daquela resolução. É assim que funciona. Então quando diz assim: fica autorizado, qualquer coisa que o conselho disser que fica autorizado, o cirurgião-dentista que já quer fazer aquilo, que pode ser harmonização, mas também poderia ser qualquer coisa, qualquer procedimento, ele não lê o resto. É assim na harmonização, e é assim no antes e depois, na selfie. Quando ele lê fica autorizada, ele não leu mais nada. Ele não lê que só ele que fez o procedimento pode postar, que clínica não pode postar, que tem que ter o termo de autorização pelo paciente (que o conselho chama de termo de consentimento). Então veja que ele, o cirurgião-dentista, só leu o fica autorizado, que era aquilo que interessava. Então, até mesmo na forma de passar a mensagem, na forma de disciplinar, o conselho também precisa ser mais zeloso, precisa ser mais cuidadoso. Ele precisa entender como a mensagem - que é a resolução - vai ser percebida pelo o que a gente chama, na nossa linguagem, de jurisdicionado do cirurgião-dentista, que está sujeito àquelas normas (as normas éticas do conselho). Então não é só dizer, é também como dizer. Como dizer para que o cirurgião-dentista - que é o destinatário da resolução - entenda o que está sendo dito, e ele realmente faça da forma que está sendo dita. Então, o que a gente teria, talvez, seria - por parte do questionamento de outros conselhos, principalmente o conselho de medicina - a resolução em si, se ela fosse feita de forma mais zelosa e mais cautelosa, isso sim. Mas não necessariamente a gente deixaria de ter os conflitos entre os médicos e os dentistas, são coisas diferentes: o conflito entre os conselhos e o conflito entre os profissionais, porque - ainda que a mensagem do conselho seja correta - o cirurgião-dentista poderia perceber aquela mensagem de uma forma diferente: ele poderia acreditar que estaria liberado para fazer tudo. A resolução precisa ser boa, e ela precisa ser em uma linguagem compreensível pelo cirurgião-dentista, para que não haja problema na resolução e não haja problema na execução da resolução, porque - ainda que o Conselho Federal de Medicina não se sentisse incomodado com a resolução se ela fosse diferente - isso não impediria de ter cirurgiões-dentistas, como a gente tem hoje, procedendo de forma contrária à resolução 230. Nós não temos hoje cirurgiões-dentistas que desconsideram a resolução 230? Que fazem as otoplastias da vida? Tem! Ou seja, o conselho já não disse que não podia? Disse! Então, o Conselho Federal de Medicina - que foi esse o exemplo - está brigando com o Conselho Federal de Odontologia por causa da resolução 230 do CFO? Não! Mas eu continuo tendo cirurgião-dentista fazendo aquilo que - aos olhos do conselho - não pode. Então foi o que eu falei: entre conselhos não tem problema, em relação à 230, mas entre profissionais tem, porque tem cirurgião-dentista que está desrespeitando a 230 e isso - aos olhos dos médicos - seria o exercício da medicina, então, eu tenho conflito entre profissionais. A questão não é tão simples como a gente acha: “se a resolução estiver certa, vai dar tudo certo”, não é assim! A gente tem a resolução 230, partindo do princípio que ela esteja certa, não é só isso que garante que todos os cirurgiões-dentistas irão cumprir o que está escrito na 230.
Laura: e sobre a suspensão parcial da resolução 230, nesse contexto, ela poderia ser considerada um prejuízo para a classe ou não?
Coltri: A questão de ser prejuízo para classe, eu acho que é muito do que o cirurgião-dentista quer, agora a gente está só falando sobre a ótica do cirurgião-dentista! Eu, honestamente, não me sinto confortável para dizer o que efetivamente seja ou não seja odontologia sobre a ótica do profissional. Eu posso dizer sobre a ótica da legislação, mas não sobre a ótica do profissional! Então, eu volto um pouquinho naquilo que a gente já conversou antes: o que eu acho importante é decidir o que a odontologia deseja ser. E aqui não necessariamente preciso ficar preso ao que historicamente a odontologia seja. Historicamente, a odontologia é tratar de dente, sobre a ótica do leigo, não de vocês, do leigo! Por isso é chamado de dentista. Assim, essa é a percepção das pessoas, é isso que eu quero dizer. Não estou defendendo o termo se está certo ou errado, não é esse o ponto, mas essa é a ideia. Então, quando eu falo que o cirurgião-dentista faz um procedimento - qualquer que seja ele - na testa de uma pessoa, isso não parece muito lógico: “como é que alguém que trata de dente mexe na testa de alguém”? Percebe? Assim, esquece aquilo que vocês conhecem, se coloquem aos olhos do leigo: “mas não está certo isso, como é que pode ser isso, se só trata de dente?” Não se sabe - o público leigo - o que é estudado dentro da odontologia, até onde vai isso, o que significa isso. O que eu quero dizer, então, é que - independentemente do que foi até hoje - precisa haver uma ideia do que eu quero para a odontologia, o que eu quero que a profissão seja, isso que é importante! Pode ser “só tratar de dente”, não tem problema nenhum se for só isso. Pode ser fazer outras coisas, em tese não tem problema nenhum, desde de que eu consiga estabelecer o que seja odontologia, sem que eu afronte outras profissões, esse é o ponto. E também não há nada - em tese pelo menos - de irregular em haver algumas coisas, ou alguns procedimentos ou tratamentos, que possam ser realizados por mais de uma profissão. Não precisa ser ato exclusivo. Por exemplo, administrar uma empresa, só administrador pode fazer? Não! Fazer declaração de imposto de renda, o melhor para fazer isso é um contador, é uma profissão, mas outras pessoas fazem. Veja que não estou discutindo o que seja melhor ou nem estou dizendo que pode fazer qualquer coisa, não é esse o ponto! É só assim: talvez, a gente pode chegar a um consenso que os profissionais que estejam habilitados para cuidar de algo - independentemente da profissão -, eles podem agir naquele algo (pode ser um caminho). Eu posso chegar a um caminho e dizer que não, cada profissão tem seu quadradinho e ninguém interfere na outra (também é uma possibilidade). Mas eu acho que a odontologia - antes de publicar as resoluções, antes de chegar ao embate - precisaria primeiro ver o que quer para si e, a partir disso, lutar para que seja reconhecido dessa forma. Mas isso eu não posso dizer o que seria, porque eu não sou cirurgião-dentista, então “eu faria isso” ou “jamais não faria isso”. Eu já não consigo falar em relação à advocacia, tão maltratada também, “o que o advogado faz ou deixa de fazer”. Pensa numa profissão maltratada é a nossa também. Todo mundo acha que é advogado, vocês já repararam isso? Não é assim? Todo mundo também é força de hábito, né? Mas todo mundo tem uma ideia né: “mas o Supremo está errado”, é mesmo? Nossa! É a mesma coisa de eu falar que a via de acesso está errada viu, “não é essa daí não”. Como assim? Por mais que eu possa ter uma noção, ter estudado até, talvez não. Talvez não seja o caminho né essa interferência, mas nós temos por hábito isso: meter a colher na profissão dos outros, mas eu não farei isso aqui hoje. Então, a resolução 230 e a suspensão depois, eu vejo mais naquele cenário de ter sido dados determinados poderes ao cirurgião-dentista pela resolução 198, que depois foram retirados pela 230. Eu vejo mais sobre essa perspectiva, porque - se o que está na 230, já estivesse na 198 - a gente não teria essa discussão. Então veja que o problema - se é que existe problema - não é a 230, é que primeiro foi feita uma “liberação geral” (ressaltou que seria com bastante aspas mesmo) para prática de atos de harmonização, para depois o conselho puxar a rédea e - na hora que ele puxou a rédea de quem já estava ali se alimentando, porque no final das contas é isso também, esse é o exercício profissional da pessoa, ela investiu muitas vezes para aquilo, não tem só o picareta não, pode ter gente que estudou bastante para fazer esses procedimentos, que investiu pesado em cursos, treinamentos, produtos e equipamentos - aí fica estranho o puxar a rédea. Porque imagine alguém que comprou um equipamento caro e estudou para fazer isso a partir da 198? Será que é legítima - não estou falando que é lícita - a expectativa de continuar fazendo aquilo que ela investiu. Não estou dizendo que seja lícita, estou dizendo só que é legítima a expectativa dessa pessoa. Então, eu volto naquilo: foi um atropelo de atos normativos do conselho e isso contribui para a gente chegar nesse momento. Então a suspensão da 230, ou a suspensão específica dos casos das decisões judiciais, eu vejo sempre sobre várias óticas. Da odontologia, já poderiam ter sido vedadas as práticas na 198. Daquele que estiver fazendo, se ele estiver de boa-fé, ele estava autorizado, o que mudou de uma hora para outra ele ficar desautorizado a fazer? Só porque o conselho publicou uma resolução de algo que já existia antes? Então veja, volto à pergunta anterior, como vai ser esse preenchimento de lacuna? Pode agora isso, aqui já não pode? Eu invisto ou não invisto para fazer esse ato? Eu compro ou não compro o equipamento? Eu me aperfeiçoo ou não me aperfeiçoo no exercício da minha profissão? Isso tudo causa impactos! Sob a ótica de quem está fazendo as ações judiciais, os cirurgiões-dentistas autores das ações judiciais, não necessariamente eles estejam errados sob a perspectiva da legitimidade de buscar aquilo, dentro desse cenário, é sempre importante o cenário, porque a 230 não foi a primeira resolução a respeito do assunto. Ela veio para corrigir algo que a 198 não disse e já poderia ter dito. Isso para mim é o mais importante. Então, o cirurgião-dentista que esteja de boa fé está seguindo o que a 198 falava ou que pelo menos ele entendeu da 198. Se isso é um prejuízo para classe, não vejo como sendo um prejuízo para classe, eu acho que não é. Prejuízo para classe é quando a gente tem alguém que está habilitado para fazer aquilo e faz algo de forma negligente, isso coloca em risco a classe. Então um advogado que fica com o dinheiro do cliente em uma ação judicial, isso é um desrespeito à classe, porque ele está no exercício profissional dele e está fazendo algo que não deveria ter feito. Se um advogado resolve assaltar um banco à mão armada, isso não é prejuízo para classe, porque ele não está agindo como advogado. É circunstancial que ele seja advogado, ele poderia ser qualquer coisa. O cirurgião-dentista que esteja de boa fé fazendo algo que originalmente o próprio conselho federal não o proibiu, pelo menos não expressamente, não vejo como prejuízo à classe. Agora, se ele for o “pilantra” que só quer tirar benefício, aí é, porque ele vai comprometer a prática de um ato que - em tese, pelo menos, pode ser profissional, porque tem a decisão judicial - ele está fazendo mal, aí é prejudicial para classe, porque ele está no exercício da profissão. Aquele que age na profissão - de forma deliberadamente equivocada, ilícita e irregular - , esse é o grande prejuízo para a classe. O que quer trabalhar de forma certa - em princípio - não deveria prejudicar a classe. Não deveria ser né assim, foi um tipo de prejuízo para classe né, isso não impede as discussões sobre o ser correto ou não ser correto fazer esses procedimentos, isso é outro assunto.
Pergunta (Naldo): o senhor comentou sobre essa questão de como o dentista quer ser visto diante da sociedade, e - como o senhor bem falou - o dentista é muitas vezes visto como aquele profissional que cuida dos dentes, mas, se a classe quiser permanecer defendendo essa área da harmonização orofacial, qual é a melhor forma para a classe fazer isso, defender essa área? Porque a gente sabe que - como foi feito até agora - não foi a melhor forma. E como a sociedade pode entender que isso pode ser uma área da atuação do dentista, caso ele queira?
Coltri: como é que algum posicionamento do Conselho Federal de Odontologia pode ser bom, se ele causa conflito com o Conselho de Medicina e com os próprios dentistas? Vocês conseguem entender que isso não tem como isso ter sido bom? Se ninguém entendeu, se ninguém concordou com aquilo, nem os dentistas e nem a outra profissão que se sentiu “mais prejudicada”. Como é que a gente muda as coisas? Até hoje só inventaram duas formas né, como se diz: “ou no amor ou na dor”. O Conselho Federal de Odontologia tentou ir pela dor, imposição: “vai ser assim”. Só que - quando ele diz que ia ser assim - ele cutucou outras pessoas: os médicos no caso. Aí, quando ele tentou recuar e corrigir uma rota, ele cutucou os cirurgiões-dentistas. Veja que não pode ser com esse caminho, dessa forma como foi feita, a partir dessas duas constatações. O outro caminho - aquilo que a gente chamaria de amor - seria a composição, a conciliação, a discussão, o debate. Só que isso demanda tempo, vontade, e uma série de outras coisas que um ato, uma resolução do presidente do CFO, ad referendum do plenário, nunca ouvido falar. Porque, quando a gente faz uma resolução de uma pessoa ad referendum do plenário, não tem discussão, porque - se tivesse discussão - a resolução era do plenário. Concorda comigo? Então por isso eu faço questão de fazer esse mini histórico, porque as resoluções da Harmonização são até mais antigas, mas só esse mini histórico de 2019 pra cá, para mostrar como é que foi feita uma coisa atrás da outra na tentativa de imposição: “tá liberado!”, “agora não pode mais!”, “se continuar fazendo eu vou te punir”. Continuar fazendo o que? Aquilo que há 2 anos o Conselho não disse que não poderia ser feito, porque a resolução da suspensão cautelar é de 2021 e a resolução da Harmonização é de 2019. Então como é que poderia ser feito isso em termos de definição? Com discussão, aprimoramento, conversa. Quantos professores foram ouvidos antes de ser definido o que pode e o que não pode ser feito em Harmonização Orofacial? Você percebe que não tem como dar certo um negócio desse? Não é que a opinião dos professores deva prevalecer de forma absoluta, não é isso, mas é ouvir. Ouvir os graduandos, “o que nós queremos/não queremos para a Odontologia?”, “até onde nós podemos ir com a Odontologia?”. Ouvir os outros Conselhos, como eu já falei, chegar no âmbito do Poder Legislativo mesmo. Agora essa parte final, do descrédito e tudo mais, aí eu vou te falar, eu não tenho a resposta. Você sabe por que eu não tenho a resposta? Porque o mesmo descrédito que vocês têm é o que a gente tem. Se a gente pegar as três profissões que nós estamos falando aqui com mais frequência, advocacia, odontologia e medicina, pega os filmes, as novelas, as séries... com todo respeito sobre o que eu vou dizer aqui agora, porque essa construção é histórica, o charlatão é o dentista, o charlatão é o advogado, médico era sempre o salvador. E eu não estou dizendo que médico não seja isso, não é esse o ponto, mas eu não posso deixar de considerar que toda profissão tem os bons e os ruins. Então, assim, perceba que nós somos bombardeados por esse descrédito. Bianca comentou, formada dentista e para o avô não foi considerada doutora, a irmã, que se formaria médica no futuro, sim. Então, veja, isso é cultural, tá? Não adianta querer mudar isso do dia pra noite. Hoje, na televisão, a gente não deixou de ver casos de advogado passando a perna em cliente, de dentista fazendo coisas erradas, o que acontece é que hoje a gente vê também médicos sendo mostrados nessa situação, ou seja, não melhorou pra nós, só piorou pra mais gente. E como chegaria nesse ponto? Cada um fazendo a sua parte e isso é muito difícil, é utópico. A gente precisa continuar fazendo a nossa parte, mas sem esperar que isso um dia vai mudar, que algum dia ninguém mais vai falar mal de advogado, eu não acho isso. Quantas e quantas piadas a gente não ouve depreciando a profissão? E por que? Porque tem gente que faz isso. Então quando a gente fala do cirurgião-dentista, o próprio ato odontológico, há um século, e sob o ponto de vista histórico isso não é nada, a conduta do cirurgião-dentista era “arrancar dente”, talvez até em menos de cem anos, na década de 50/60, o principal procedimento era extração de dentes. Como se valoriza alguém que a única coisa que faz é “arrancar dente”? E não tinha espetacularização. A percepção é diferente, é histórica. Por isso que eu digo que deve partir do cirurgião-dentista o posicionamento sobre como ele quer ser visto. Eu não acho que seja errado ele ser visto como aquele que faz outros procedimentos, se não for ilegal e se ele tiver competência técnica pra fazer, tá tudo certo. Então eu acho que esse é o ponto mais difícil, essa mudança de perspectiva, esperar que a população veja diferente... esquece, não vão ver, não num curto espaço de tempo. E pra fechar essa parte, pra te dar mais um ponto, você tem plano de saúde? Deve ter, né?! Talvez todos aqui tenhamos. Quantos de nós temos planos odontológicos? Quantos de nós pagamos advogado, mensalmente, para o caso de precisar? Ninguém. Dentista é custo. Advogado é custo. O plano de saúde médico é investimento. Não é? Olha a percepção. Isso explica muita coisa. Agora, quando a gente fala de harmonização, ou procedimentos estéticos, aí é investimento, não é? Então veja que as pessoas percebem valor quando não está associado àquilo que ela entende como prejuízo. Se a pessoa estiver com dor de dente e vier a precisar de um implante, é prejuízo. Se ela estiver com o dente um pouco mais escuro e, na cabeça dela, isso estiver fazendo com que ela não encontre um namoro, um emprego e for oferecido a ela um procedimento como lentes de contato ou, em outra análise, até que precise mesmo de um implante, ela vê isso como investimento. Olha como muda a percepção. Aí ela dá valor, ela dá valor ao cirurgião-dentista que melhorou a autoestima dela, mas ela não dá valor àquele que eliminou a causa da dor, aquilo continua sendo prejuízo. Eu acho que isso fala muito sobre as nossas profissões. Imagine você enquanto especialista em Odontologia Legal? Como você é visto? Segundo essa percepção, você faz coisa boa pra alguém? A gente vai lidar com isso, mas aí é a técnica, é a qualidade da prestação do serviço e, em última análise, entender que isso vai acontecer, mas que a gente tem que seguir adiante com o nosso trabalho. Aí, até a primeira pergunta que a Laura fez, qual foi o tema do meu trabalho de dissertação? Foi sobre a importância da prova pericial nas decisões de ações judiciais de responsabilidade civil. E aí eu vou fechar a resposta, essa pesquisa está atualizada até o ano passado. A pesquisa inicial apontou que 95,85% das vezes em que havia um laudo pericial conclusivo, a decisão judicial seguia a conclusão do laudo pericial. Então, o advogado é importante. O juiz é importante. Mas tem uma pessoinha que é MUITO importante nessas ações, que é o tal do perito. Porque o juiz, que estudou muito, que batalhou, é difícil chegar aonde ele chegou, é verdade, só que ele está na mão de um cirurgião-dentista, que ele nomeou como perito. O que eu quero dizer é que quando estamos numa ação judicial a gente tem paciente, cirurgião-dentista, advogados e o juiz na mão de uma pessoa que deveria, não no sentido legal de dever, ser especialista sabe no quê? Em Odontologia Legal. Para saber fazer perícia e laudo pericial. Eu atualizei os dados, hoje, 98% das decisões do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, são mais de 500 acórdãos em que o laudo foi conclusivo, a decisão seguiu o que o perito falou. Então olha a importância do dentista. Harmonização, por exemplo, é importantíssimo, mas se cai numa ação judicial vai ser a decisão do especialista em Odontologia Legal que vai resolver. Então qual foi o objetivo do meu estudo? Despertar, desde a graduação, mas não só nela, esse sentimento de importância da Odontologia Legal. Então, quando a gente tem laudos periciais muito bem feitos o magistrado reconhece a qualidade daquele profissional, a importância do profissional perito e as partes também. Veja como é um viés de reconhecimento profissional e fugindo um pouco da ideia de “dentista trata de dente”. A imensa maioria dos tratamentos odontológicos não chegam nem perto do valor de uma condenação judicial. Quanto que um dentista recebe por uma extração? Vamos continuar no exemplo da extração, que a gente já estava falando dela, extração sem muitas complicações, não é aquele terceiro molar, entre R$ 500,00 e R$ 1000,00? Acho que não chega a isso, estamos chutando aqui, mil reais, isso não dá nem o dano material, porque se a extração foi errada vai ter que fazer um implante, quanto que custa esse implante em um elemento? E se a pessoa foi pra UTI? Deu uma infecção e precisou... o que vocês acham que vale mais? A ação judicial ou o procedimento odontológico que deu origem àquela ação? Isso porque eu não estou colocando nem honorários, nem despesas do processo, que aí a conta vai longe. Então, olha só, quantos procedimentos são de valor pequeno, mas que quando geram um dano a condenação é de valor maior? A imensa maioria. Olha a importância da Odontologia Legal, está na sua mão, quando nomeado perito ou perita, contribuir para a decisão do magistrado dizendo se o paciente que supostamente sofreu aqueles prejuízos merece ou não merece a reparação. Então é perceber a profissão, valorizar o que é feito, eu acho que isso é importante, as pessoas pensam que é só ir lá e fazer um laudo. E não é não, não é fácil assim.
Naldo: Muito bom, professor! Muito obrigado!
Joelmir: Professor, então, nessa perspectiva, na prática, como vem sendo estabelecida a relação entre a resolução e a suspensão dela com a prática dos advogados?
Coltri: O que eu acho, Joelmir, é que pra quem estuda tudo isso sob a ótica da legalidade, do que está escrito nas normas, a resolução ajudou a entender. Por que? Porque ela esclarece alguma coisa que estava pendente na 198/2019. Veja o que eu estou dizendo agora, sob a ótica de quem estuda as normas, ela foi bastante clara, a 230/2020, não pode fazer “isso, isso e isso”, então, do ponto de vista da norma pela norma ela foi bastante clara, deixou bastante evidente o que não poderia ser feito. Mas eu insisto no histórico, que é aí onde reside o problema, como as coisas aconteceram. E aí se a gente pega isso, da mesma maneira que a 230/2020 é clara naquilo que ela quer dizer, ela também entra em conflito com a 198/2019, porque ela vem justamente para restringir o entendimento da 198/19. E nesse conflito do que não foi dito na 198/19 e as restrições impostas pela 230/2020, é o que causa uma insegurança jurídica. Será que tem mais coisa ali que o Conselho deveria restringir e não restringiu? Será que restringiu demais? Eu entendo o que a resolução quis dizer, e ela disse, mas talvez ela pode ter dito fora do tempo ou ela pode ter dito mais ou menos do que ela deveria ter dito para esclarecer a 198/19. É isso que causa insegurança jurídica. Eu vou fazer um paralelo do que a gente está vivenciando agora. Aqui no estado de São Paulo o governador resolveu tirar alguns incentivos para compra de carro para a pessoa com (PCD). Ele publicou uma lei no final de 2020, já pra entrar em vigor em 2021 e aí entrou em discussão. Ele pode restringir? Em tese ele até poderia, só que ele não poderia fazer daquela forma, foi fora do momento. E aí se coloca na posição do PCD, de quem tem o carro, “eu pago ou não pago o IPVA de 2020? Porque mudou a lei, a lei já existe, mas será que se aplica agora? Ou só no ano que vem?”. Então, veja, o fato de existir algo dizendo claramente o que ela quer dizer, nem sempre é suficiente para afastar as dúvidas e eu acho que a 230/2020 vem com um pouco disso, pelo histórico. Talvez, daqui a um tempo, a gente não tenha mais cirurgiões-dentistas iniciando a prática de procedimentos que já estejam proibidos pela 230/2020, mas e aqueles profissionais que a partir da 198/2019 começaram a fazer procedimentos e depois a 230/2020 bloqueou? Esses é que estão com problema. Não são profissionais que querem começar a fazer isso, são profissionais que já faziam e querem continuar fazendo, é diferente. Então a gente ainda tem essa fase de transição e por isso que eu comecei a nossa conversa falando do histórico. A gente não pode esquecer que a resolução 230/2020 é um complemento da resolução 198/2019, do que poderia estar na 198, mas não está. Então a gente teve um ano, mais ou menos, em que os cirurgiões-dentistas fizeram coisas, investimentos, estudos... isso eu estou falando para os de boa-fé, os de má-fé... bom, má-fé é má-fé, seja na odontologia, na advocacia, na vida como um todo. Os de boa-fé praticavam, então eles querem continuar fazendo porque originalmente essa restrição não veio. Entendo que a resolução 230/2020 fez um corte temporal. Quem não começou a fazer talvez nem comece, mas quem já estava fazendo vai brigar até o fim para continuar fazendo, porque aquilo é o ganha pão da pessoa. Certo ou errado, aquilo é o ganha pão da pessoa. O que ela quer discutir é justamente isso: “eu estou certa ou eu estou errada na minha interpretação dessas duas resoluções (a 198/2019 e a 230/2020)?”, sempre à luz do que está na lei 5081/66, que regulamenta efetivamente a Odontologia. Para nós advogados é o que eu te falei. Eu entendo quem queira continuar fazendo se estava de boa fé. Eu não faço diferenciação entre estético e terapêutico. Por quê? Porque o corpo não sabe essa diferença. Faz uma abdominoplastia e faz uma cesárea em uma mulher. A cicatriz, a incisão, é na mesma região. Será que o corpo da mulher vai saber “isso aqui é uma incisão de cesárea, então eu vou reagir dessa forma”. Não estou dizendo que elas sejam iguais ou que elas sejam da mesma dimensão, não é esse o ponto, só estou dizendo que ela é na mesma região. E aí o corpo responde de uma maneira diferente? Não, não responde. Aliás, o corpo escolhe como ele quer responder? Não. Então, um é estético, o outro não é estético, nem por isso o corpo se autodetermina a partir do que eu entenda ou do que eu classifique o procedimento. Então eu não faria essa distinção. Acho que o caminho não é esse. Se é estético ou se é terapêutico, para mim não importa. O importante é se isso é ou não é Odontologia. Eu acho que é isso, essa é a discussão. Eu não vou confundir também competência com capacidade. Ou seja, o cirurgião-dentista pode ter toda capacidade do mundo para fazer, mas talvez ele não tenha a competência legal. Então ele pode ter capacidade técnica, ou competência técnica, mas ele não necessariamente tem competência legal. Eu posso saber fazer muito um implante odontológico, mas muito. Eu não sei, mas eu poderia. Isso me autoriza a fazer? De maneira nenhuma. Eu não posso fazer profissionalmente aquilo que eu estudei pra caramba, são coisas diferentes. No meu mestrado eu tive que decorar esses negócios que vocês sabem. Eu tive que decorar isso. Eu poderia rachar de estudar e entender tudo isso. Eu poderia fazer algum procedimento odontológico? Não. Eu poderia até ter a capacidade de fazer, mas eu continuo sem a competência para fazer. Sabe, isso é importante. Então essa história de “eu estudo a face como ninguém”, com todo respeito, isso é importante, mas não é tudo. Isso é importante, mas não é tudo. Até porque o que que o dentista briga? O cirurgião-dentista que não quer ser só associado ao dente, o que que ele diz? A Odontologia é muito mais do que dente. Porque tem vários processos do sistema humano que desembocam na boca, com perdão do trocadilho, e tem muita coisa que acontece na boca que vai ter reflexo em alguma outra parte do corpo. Não é assim que funciona? Então eu quero ser entendido como um profissional capaz de entender a complexidade do ser humano e tratar o específico. Não estou dizendo que seja só dente. Mas algo específico. Então pode ter uma competência do corpo inteiro, entender para onde vai tudo, onde passa tudo, mas isso é capacidade. Isso não necessariamente é competência. Então conhecer todas as estruturas da face, isso é capacidade. Você tem, eu não tenho. Mas eu poderia ter. Mesmo sendo advogado, eu poderia ter. Mas eu não tenho competência. Você tem competência. Alguém pode ter mais capacidade do que a outra, mas não tem competência. Vou falar isso para vocês também usando o exemplo da Odontologia Legal. Tem muito colega nosso... E aqui vocês estão, pelo menos, diante de duas que eu conheço, que são Laíse e Bianca, que sabem muito mais coisa da parte de direito odontológico do que muito colega advogado. Tem muito colega advogado que não sabe nem um décimo do que elas sabem, por exemplo, de responsabilidade civil. Isso é capacidade. Elas têm capacidade. Mas não tem competência, por exemplo, para entrar com uma ação judicial em nome de alguém ou para defender alguém como advogado. O colega advogado tem menos capacidade que elas, mas tem uma competência que elas não têm, que é ser advogado. Então ele pode fazer, mesmo tendo menos capacidade. Para mostrar pra vocês que essas coisas elas não necessariamente andam juntas. Alguém pode ter mais capacidade, mas não ter competência. Pode ter menos competência e menos capacidade, que é o pior dos mundos. Ou pode ter o mundo ideal, que é mais capacidade e a competência necessária. Então a gente precisa diferenciar isso, que é a ideia das cadeiras de formação ou das matérias de formação, de base, que são comuns. Bioética, Anatomia... Isso são cadeiras comuns. E aí vem a cadeira da competência depois, que aí sim entra com o procedimento odontológico, específico da Odontologia. Isso é o que te dá a competência para atuar como cirurgião-dentista. Isso eu acho importante, pra gente não confundir as coisas. Se eu estudo eu posso fazer. Não.
Pergunta (Bianca): Quando você começou a falar, respondendo o Joelmir, nessa questão de pra vocês na área do direito a resolução 230/2020 meio que veio para botar o holofote ou pelo menos uma lanterninha no sentido de que o caminho das ações teria que ser por aqui ou por ali, do que podia e do que não podia, pelo menos né, para o dentista fazer em termos de competência. Aí eu fiquei me questionando... porque você está atuando no estado de São Paulo, você sabe melhor do que a gente que aí vocês têm um campo mais vasto, já aconteceu, já acontece a mais tempo essa questão de judicialização de insatisfação do paciente por determinado procedimento odontológico. E aí eu tinha curiosidade de saber: você, na sua experiência profissional, desde 98, quando teve a primeira resolução da HOF, tem sido mais contratado para atuar defendendo o cirurgião-dentista ou o inverso, o outro lado da moeda?
Coltri: Eu, especificamente, só trabalho com cirurgião-dentista. Eu não trabalho para paciente. Então eu não tenho essa procura por parte... aliás, procura às vezes até tem, mas não faço tá. Não faço. E o cirurgião-dentista, nesse ponto específico, ele tem três grandes caminhos. O primeiro deles é a defesa em uma eventual ação judicial movida pelo paciente, com essa discussão de se ele poderia fazer ou não poderia fazer essa coisa toda na discussão com o paciente. Então o paciente alega um erro do cirurgião-dentista e diz “além dele ter feito errado, ele nem poderia fazer isso, porque ele não tem competência”, aquela coisa toda. Tem a questão dos processos éticos. Então o conselho já abriu o processo ético contra o cirurgião-dentista, ele tem que se defender no processo ético. E também tem a questão da discussão do cirurgião-dentista contra os conselhos no âmbito judicial quanto à validade das resoluções. Então veja que essa mesma atuação em harmonização para nós advogados tem esses três grandes campos. A defesa quando o paciente move a ação contra o dentista. A defesa do dentista quando o conselho abre o processo ético contra ele. E a orientação e a propositura de ação em nome do dentista contra o conselho questionando a validade dessas resoluções que a gente tem mencionado e de algumas outras. Então seriam esses três caminhos possíveis aí para o advogado. E o que eu acho importante sempre ficar claro é que nenhum deles dá para garantir que a nossa opinião seja efetivamente a verdade e ela irá prevalecer. A gente ter falado dessas decisões aí em relação a resolução 230/2020 (essas decisões que suspenderam parcialmente a resolução), tem que ter um cuidado com isso. Essas decisões só valem para os cirurgiões-dentistas que são autores dessas ações judiciais. Então elas não valem para todos os cirurgiões-dentistas. Isso eu acho que é importante ficar claro também. É... não necessariamente vai ser o entendimento que vai ser seguido por todos os desembargadores, todos os julgadores, porque, apesar de a gente ter mais de uma decisão, elas se concentram na figura de um desembargador. Então a gente tem algumas decisões judiciais que concedem essa suspensão para alguns cirurgiões-dentistas, mas, todas as que eu conheço pelo menos, foram dadas pelo mesmo desembargador. Então é a opinião, o posicionamento desse desembargador. Não necessariamente é a opinião da turma ou da câmara que ele compõe, que ele tá junto, que ele pertence, do colegiado, porque a decisão do recurso é dada por um colegiado de julgadores. Então não necessariamente os outros pensam iguais. E não necessariamente outros desembargadores de outros lugares estão decidindo da mesma maneira também. Então, tem que ter esse cuidado para que a gente não venda a ilusão e nem venda necessariamente a decepção dizendo “ah, não vai dar certo”. Não dá para dizer isso. O que eu estou querendo passar é que a gente está num começo de discussão, que pode ser uma discussão que logo ali na frente já vai acabar porque não vamos ter mais nenhuma decisão sustentando ou a gente pode estar diante de realmente uma mudança de paradigma. Isso de vez em quando acontece. Começa com uma, com duas, com três decisões de um desembargador, aí nisso tem o convencimento daquele colegiado, depois é o convencimento daquele tribunal e daqui a pouco, esse daqui a pouco eu estou exagerando... isso leva um tempo (5, 6, 10 anos), este passa a ser efetivamente o entendimento do poder judiciário a respeito daquele assunto. Tudo isso pode acontecer ainda. Tanto daqui a pouco não valer de nada essas decisões como daqui a pouco essas decisões se tornarem realmente o caminho que o poder judiciário entendeu correto, como interpretação das normas que regem a regulamentação da Odontologia. Então a gente tem que ter só esse cuidado. Não vender falsa promessa de que todo mundo vai entender assim e também não dizer que essas decisões não valem de nada, porque elas valem sim, elas estão sendo aplicadas. Mas só para os dentistas autores das ações.
Pergunta (Herrison): Professor, pegando o gancho da professora Bianca, em relação aos casos que o senhor tem defendido ultimamente, o senhor tem visto a decisão mais para favorável pra essa questão da aprovação desses procedimentos em harmonização ou meio a meio ou mais desfavorável em relação aos cirurgiões-dentistas que executam esses procedimentos?
Coltri: Oh Herrison, você está dizendo em que aspecto? Nas ações de supostos erros em harmonização, é isso? É nesse cenário?
Herrison: Isso, é nesse cenário.
Coltri: Tá. A gente ainda tem muito pouco ação judicial sobre erro odontológico em harmonização. Muito pouco. Porque é recente. Então a gente ainda não... Recente que eu digo é a partir da resolução 198/2019, que a harmonização teve um boom né da prática e tudo mais. Então a gente ainda não teve muitas ações judiciais. E além de não ter muitas, são poucas as que já chegaram efetivamente ao resultado, pelo tempo que demora o processo. Uma ação judicial demora em torno, pode ser mais rápido pode ser mais demorado, mas em torno de 2 anos e meio a 3 anos. Então a gente ainda não alcançou aquele momento em que nós vamos ter várias ações e várias ações sendo julgadas. Do que eu conheço até hoje, a gente tem mantido na harmonização aquilo que a gente percebe na Odontologia como um todo e que também eu obtive esse dado com a pesquisa lá que eu mencionei pra vocês já. A maioria das decisões, mas é uma maioria apertada, por volta de 55% das ações judiciais, são julgadas favoráveis ao paciente. É quase que um empate técnico, vamos dizer assim. Mas se tiver que dizer “a maioria vai para um lado ou a maioria vai para o outro?” A maioria vai para o lado do paciente. Então é uma maioria de procedência das ações. Isso também vale aqui. Qual é o grande ponto da harmonização? Para além da técnica, para além da prática em si, daquelas coisas todas que a gente já falou (sobretudo de capacidade aqui, porque agora a gente não está discutindo competência) é a ideia do consentimento do paciente, da informação ao paciente. Porque quando a gente lida com essas questões voltadas primordialmente para a estética, para além de ter sido feita a conduta certa ou errada, também se discute se o paciente tinha ou não tinha conhecimento de que aquele resultado poderia acontecer. Então essa maioria de condenações ela também acontece porque em uma boa parte das ações judiciais o dentista não errou tecnicamente, mas ele falhou no cumprimento do dever de informação. Ele não errou na técnica, ou seja, ele não errou lá na especialidade dele, mas ele errou porque não conhece a Odontologia Legal. O dentista fez o procedimento todo certo, aí não importa, pode ser harmonização, pode ser o implante, pode ser orto, só que, no viés estético, ele não informou quanto ao resultado, a possibilidade daquele resultado. Ele falhou na parte da Odontologia Legal. Então tem condenação. Então oh Herrison, fica esse percentual um pouquinho para mais. E aí eu quero falar uma coisa pegando a pergunta do Herrison, porque eu acho que é muito legal. A gente vive nesse nosso mundinho de Direito Médico, Direito Odontológico, Odontologia Legal, aí a gente acha que todo mundo sabe do que nós estamos falando, porque a gente vive isso, a gente acorda com isso, a gente respira isso e a gente dorme isso. Aí quando chega uma ação judicial dessa, no poder judiciário, o juiz não tem a menor noção se isso é Medicina, se isso é Odontologia, se é as duas coisas, se é qualquer outra coisa que não seja nada disso. Ele não, juro pelo que vocês quiserem, ele não sabe. Aí às vezes tem procedimento de harmonização que foi feito pelo médico, mas ele ouviu que quem faz isso é dentista, certo ou errado, foi o que ele ouviu, aí ele vai e nomeia como perito um dentista. Aí às vezes é ao contrário, o dentista que fez o procedimento, mas aí ele ouviu que quem faz harmonização não pode ser dentista, “porque eu ouvi isso no fantástico outro dia”, então quem faz é médico, aí ele vai lá e nomeia médico. Aí o médico faz assim: “eu não sei essa parte que está sendo discutida aí, porque isso realmente não é meu, isso aí realmente é da Odontologia”. Eu já vi de tudo nessas perícias. Para mostrar o quanto é difícil, o quanto é cinzenta essa área que a gente está conversando aqui hoje. Então, cuidado com isso porque os juízes não sabem nada do que nós estamos conversando aqui. Nada. Isso não é demérito. Porque é humanamente impossível saber tudo. Não é demérito. Em tese eles deveriam saber tudo, mas não sabem. Isso não é demérito mesmo. É a ideia de que os juízes decidem de acordo com o que eles são informados. Lógico que eles vão atrás também da informação, mas eles partem daquilo que eles são informados naquilo que eles não conhecem. A gente não precisa ficar discutindo pro juiz obrigação de meio e de resultado. Isso eles já sabem. Agora se harmonização é Odontologia, é Medicina, é no final das contas as duas coisas, não é nada disso, ele não sabe. Então ele vai receber essas informações e de acordo com o que ele receber, sendo verdade ou sendo mentira, ele vai decidir. Aí às vezes a gente vê uma decisão judicial, a gente fica louco da vida. Aí a gente faz assim “pelo amor de Deus, esse juiz não sabe o que ele está fazendo?”. Às vezes quem não soube o que estava fazendo era o advogado, que não levou a informação até ele. Então, nesta pergunta do Herrison eu acho que é importante complementar dando esse viés. O que é que o juiz vai decidir? Se foi adotado uma técnica correta e se foi cumprido com o dever de informação. É isso que ele vai olhar. Se era médico, se era cirurgião-dentista, isso, na ação judicial de erro médico, muitas vezes fica em segundo plano. Por quê? Porque aquele juiz, ele não... Veja, o paciente colocou a seguinte questão jurídica para ele decidir: houve ou não houve erro? O paciente não colocou a questão: o dentista poderia ou não poderia fazer? Vocês entenderam a diferença do que é colocado para o juiz decidir numa causa dessa? Aquelas ações judiciais que tiveram a liminar ou as liminares que a gente falou, o ponto que o juiz tem que decidir lá é se é ou não é um procedimento odontológico. Nas ações de erro, esse ponto não foi colocado para o juiz decidir. Então ele pode até considerar, mas ele não fecha essa questão. Ele não decide “isso não é procedimento odontológico”. A não ser que seja algo realmente gritante, obviamente. Fez lá uma cirurgia cardíaca que não era de emergência. Estou exagerando, isso eu nunca vi. Aí não. Mas, se está ali naquela zona cinzenta, ele vai olhar o que? Foi feito ou não foi feito de acordo com a técnica. Se é odontológico ou não, isso é uma outra questão. Isso não foi posto para ele decidir. E se foi cumprido com o dever de informação. E onde os profissionais de harmonização pecam? No cumprimento do dever de informação.
Herrison: Eu acho que isso aí professor também vai refletir no benefício que essa decisão que teve agora pode trazer, porque acaba como o senhor pontuou. A maioria dos juízes eles não vão ter esse entendimento, então se eu tenho um juiz que teve uma decisão favorável, aí vamos dizer que eu tenho um segundo juiz que teve uma decisão favorável, eu acho que vai um pouco aquele efeito manada: “se eles dois disseram que acha que está dentro, provavelmente deve tá, então eu vou seguir nessa mesma linha de raciocínio”. Eu acho que essa primeira decisão favorável acaba favorecendo as demais pelo fato de eles não terem tanto conhecimento também sobre o assunto para se aprofundar muito sobre isso, então um vai levando o outro né.
Coltri: É isso, perfeito! E olha que interessante: eu não tenho esses dados, mas será que tivemos 5, 10, 15 ou 20 (ou mais de 20?) decisões judiciais sobre a resolução 230/2020? Posso garantir para vocês que foram bem mais de 20, no Brasil inteiro. Quantas dessas 20 negaram a suspensão da resolução? A infinita maioria. Talvez 90 a 95% dessas decisões negaram a suspensão. Mas qual decisão ganhou mais publicidade? A que suspendeu a resolução. É o que o Herrison acabou de falar: “eu ouvi dizer que suspenderam a resolução”, mas por que isso? Porque não ouvi dizer que mantiveram a resolução, porque isso não está sendo dito, não está sendo alardeado. E aqui eu não estou fazendo juízo de valor, só estou dando uma informação, uma constatação: a captura do julgador. O julgador é capturado (aqui num sentido figurado, sem demérito nenhum) na ideia de que: “olha, aconteceu a decisão”. E agora, o que o advogado tem que fazer? Pesquisar o que não foi dito, que são as decisões que mantiveram a resolução 230/2020. O que é mais fácil de pesquisar? Aquilo que está em todo lugar ou aquilo que não é dito? Aquilo que está em todo lugar! Se eu digitar “suspensão da resolução 230/2020”, eu encontro a notícia. Já se eu digitar “manutenção da resolução 230/2020”, eu não encontro a notícia. Olha com a coisa é complexa: isso é técnica! Então quem quer dizer para o juiz que a resolução está suspensa, que aquilo é sim um procedimento odontológico, vai ter mais facilidade. Já quem quer dizer que isso foi uma decisão esporádica (aí seria o conselho ou o paciente), vai ter muito mais trabalho de pesquisar, de garimpar a decisão judicial para juntar várias delas e poder dizer: “isso é uma exceção, a maioria é nesse outro sentido aqui”. Mas se o advogado não fizer essa última parte que mencionei, qual vai ser a verdade posta ao juiz? Dentista pode fazer sim, porque tem decisão judicial suspendendo a resolução 230/2020. E aí cria-se o efeito dominó que o Herrison mencionou, depois de um ou dois ouvirem que foi decidido assim, todos também decidem, sendo isso certo ou errado. Até que um dia, alguém pare, pense e diga: não porque houve decisão (ou não), meu entendimento é esse, sendo igual ao que já foi decidido ou diferente. Isso realmente pode criar um efeito dominó muito grande, porque se uma parte fala que tem decisão judicial e a outra parte fala que é o conselho que tem que dizer o que pode e o que não pode: o conselho já disse! O pode judiciário já decidiu, se eu sou juiz eu vou seguir o poder judiciário, não vou seguir o conselho. E aí as decisões começam a se repetir. Então tem que ter esse cuidado, dependendo do lado que você estiver, é a informação que você vai buscar. Só não vale mentir, se a informação for verdadeira e estiver dentro da técnica, está valendo. Mentir e ocultar provas não vale. Até porque, é aquilo que a Bianca mencionou: precisamos entender o que é a profissão, advogar significa “falar em nome de”. Mas é aquilo que eu posso falar, por isso não posso mentir, se eu não quero que o outro minta, também não vou fazer isso.
Pergunta (Laura): Quais são as perspectivas direito-legais ao âmbito civil e penal que permeiam o debate em relação à decisão de suspensão parcial da resolução 230/2020? E, além disso, se expressar publicamente contra essa resolução equivale a deixar de exercer o dever fundamental de propugnar a harmonia da classe?
Coltri: Eu acredito que não, Laura. Veja, mais do que “o que fazer” ou “o que dizer”, é como é dito. Vou repetir: eu entendo que o processo de elaboração e publicação dessas resoluções foi muito equivocado. Mas uma vez que a resolução foi publicada, ela tem que ser cumprida até que seja cancelada, suspensa ou revogada, enfim. A gente deve respeito ao conselho, o fato de eu não concordar com o processo de criação não me dá o direito de não cumprir. Se eu não concordo, eu tenho que buscar os meios para questionar a existência daquele ato (uma ação judicial, por exemplo, como foi feita por alguns). Então veja, isso tudo está dentro da legitimidade da discussão. A gente não pode, por exemplo, fazer ofensa a pessoas. Eu disse aqui: eu acho que o presidente do CFO foi apressado. Mas eu não estou falando da pessoa, estou falando da função que está sendo exercida; eu não conheço a pessoa e não tenho nada contra a pessoa, porque não a conheço, pode ser uma pessoa muito agradável ou muito desagradável, eu não sei. Então jamais é em relação à pessoa, quando a gente diz que ele foi apressado, é com base nessas informações. O que não pode, por exemplo, é dizer que ele tinha algum interesse em fazer isso, porque isso eu não tenho como provar, então estou extrapolando o meu direito. Então volto no histórico feito nesse nosso bate-papo de hoje: quando o cirurgião-dentista recebe uma informação do conselho, pela resolução 198/2019, de que ele estava autorizado a fazer procedimentos de harmonização, e depois esse mesmo conselho vem e, na visão cirurgião-dentista, limita aquilo que estava autorizado, eu considero legítima a discussão. Por que? Vou falar de novo: o que foi limitado na 230/2020 já poderia ter sido limitado na 198/2019. Não teve uma mudança na sociedade, ou uma mudança no cenário que gerou a necessidade de limitar, não foi isso, não teve um fato novo. A situação que existia no tempo da 198/2019 (tirando a pandemia, que para isso não interfere em nada), também existia na 230/2020. Então eu não acredito que seja infração ética discordar da resolução e discuti-la, seja em ação judicial, seja em fóruns, a discussão sobre atos é boa. Da mesma maneira que discutimos lei: “ah, não acho que isso aqui devesse ser crime” ou “aquilo ali talvez devesse ser”, mas eu sou obrigado a cumprir a lei, enquanto aquilo não for revogado ou suspenso, sou obrigado a cumprir. Quantas e quantas vezes nós criticamos a lei, criticamos decisão judicial, não é mesmo? Mas somos obrigados a cumprir. Não podemos confundir a crítica/discussão com o incentivo ao descumprimento. Jamais pode ser um incentivo ao descumprimento, do tipo: “não faça” ou “não siga”, NÃO PODE. Você não concorda? Tem que buscar soluções de discutir aquilo, esse é o caminho. Então o simples fato de discutir não me parece que seria uma conduta que ensejaria infração ética prevista de deixar de propugnar pela harmonia da classe. Se houvesse um incentivo ao descumprimento, eu poderia considerar que sim. E, sobretudo agora, com decisão judicial dizendo que realmente tem fundamento para ser suspensa, né? Se o poder judiciário disse que ainda que seja uma decisão liminar, ela existe. Então não é tão ilógico assim, se existe um membro do poder judiciário que entende igual a esses cirurgiões-dentistas (que buscaram a suspensão), então acredito que não tenha essa possibilidade de infração. E, por outro lado, se o conselho punir com base só nisso, aí sim me parece um abuso de autoridade. Ou seja, o conselho estaria querendo negar vigência à decisão judicial punindo eticamente o cirurgião-dentista com base em outro fundamento (que ele não está propugnando pela harmonia da classe). Então não vejo como algo problemático, com esses limites: desde que não haja incentivo ao descumprimento, sem ofensas as pessoas. A discussão é sempre válida, pessoal! A gente só cresce na discussão! E vou falar aqui o que sempre falo em todas as aulas ou cursos que eu dou: não acreditem em nada do que estou falando para vocês! Não porque estou mentindo, minha intenção não é fazer isso; mas a gente só cresce no estudo, só cresce no desenvolvimento, só consegue evoluir quando a gente ouve e estuda! Eu ouvi muita gente, ainda ouço muita gente. Tem gente que eu ouço e falo: isso aqui eu nunca tinha pensado. Então vou atrás e falo: não, não tem chance de ser isso que essa pessoa falou, não. Mas tem gente que eu falo: isso aqui eu nunca tinha pensado, então vou atrás e falo: não é que é isso mesmo?! Mas essa decisão tem que ser nossa, de cada um de nós. Temos que ouvir as informações e criar o nosso convencimento. Por isso que eu gosto ter opiniões diferentes nos cursos que eu coordeno, levo professores que têm opiniões diferentes das minhas, eu não sou dono da verdade. Eu tenho a minha opinião e fundamento a minha opinião, mas não necessariamente eu estou certo, quantas e quantas vezes posso estar errado! Temos que ter esse cuidado pra dizer que discussão gera conhecimento, ouvir o outro gera conhecimento, ouvir opinião contrária então... gera mais conhecimento ainda. Porque se eu mudo de opinião, eu melhorei. E se eu não mudo, a partir da consideração do que o outro falou, a minha opinião se torna ainda mais embasada, fico mais firme sobre a minha opinião. Então cursos, reuniões de liga, etc, são sobre isso. Não é a pessoa chegar aqui e dizer que você tem que engolir o que estou falando, porque sim, jamais pode ser assim. Nós só damos um norte e uma opinião, o resto é com vocês!
Pergunta (Joelmir): Ainda na perspectiva da pergunta de Laura, nesse cenário ainda controverso se o cirurgião-dentista pode ou não pode realizar tal procedimento, como a rinoplastia, caso ele realize esse procedimento a pedido de um paciente, por exemplo, quais seriam as implicações jurídicas no âmbito civil ou possivelmente penal que ele poderia ter, além da questão ética?
Coltri: Hoje nós temos dois grupos: o grupo do cirurgião-dentista que é autor das ações em que teve liminar e o segundo grupo, do cirurgião-dentista que não é autor dessas ações. Se ele for autor nessas ações, ou seja, se ele for beneficiário dessa ação que suspendeu a 230/2020, ele poderia fazer aquele procedimento, se tivesse indicação técnica. Mas o que a gente não pode perder de vista nessa relação cirurgião-dentista/paciente é o dever fundamental, que está no art. 9º do Código de Ética Odontológica, inciso XIV, que constitui infração ética deixar de assumir responsabilidade por aquilo que o cirurgião-dentista faz, independentemente do paciente ter pedido para ele fazer, ou não. Então vejam, o que é o grande ponto, e que serve pra tudo (mesmo que na HOF, por ser procedimento estético, tenha uma elevação de importância): o CD é o detentor do conhecimento técnico, então cabe a ele definir o que pode e o que não pode ser feito no caso concreto. Isso não pode/deve ser terceirizado/transferido ao paciente. A definição quanto ao que seja/não seja tecnicamente adequado pro caso concreto é do CD. Então se o paciente pedir pra que ele faça algo que não esteja indicado e ele faz, ele está agindo errado. E nós temos decisões judiciais dizendo justamente isso: o fato do paciente ter pedido pra que fosse feito algo, não significa que, a partir daí, o profissional esteja autorizado a fazer isso. Porque é ele, profissional, que tem conhecimento técnico, e é ele quem deve dizer “isso não é aconselhado”. No caso da HOF, os dentistas que não são autores dessas decisões judiciais onde houve a concessão da liminar, não podem fazer esse procedimento. Um exemplo: se o paciente chegar e falar “eu fui no doutor A, e ele é autor da ação judicial (então ele tem essa possibilidade, porque a decisão judicial liminar o está protegendo pra fazer isso), só que ele cobrou muito caro. Agora eu vim aqui contigo, e todo CD pode fazer, não pode?”, resposta: NÃO! O outro dentista pode, eu não posso; só que aí, eu não quero perder o paciente, daí eu falo: claro, todos podem fazer, tem a decisão judicial... só que eu não sou autor da ação, eu estou enganando o paciente. Olha como é que já começou errada essa relação. O paciente fala: “eu quero fazer isso” e o dentista pensa: “não tem indicação, mas ele vai me pagar bem, então eu vou fazer”. E aí ele faz o suprassumo do desconhecimento do que seja exercício profissional. Ele fala: “ah, mas eu vou me proteger, e pra isso eu vou fazer um termo de conhecimento onde o paciente reconhece que ele foi informado que aquilo não era adequado e eu só estou fazendo o que ele pediu”. Ou seja: o CD produz prova de que ele está fazendo um ato que ele sabidamente já havia dito que não poderia fazer, faz prova contra ele mesmo, e isso ao invés de ajudar, só vai piorar. Porque ele parte da ideia de que ele transferiu a responsabilidade do ato profissional pro paciente, e isso não existe. O paciente decide dentro daquilo que for tecnicamente indicado pro caso concreto. Vou falar da advocacia de novo: a gente tem um prazo pra fazer a ação do mandado de segurança, 120 dias a partir do ato de coação. Se passar esse prazo, não cabe mais mandado de segurança. Então imaginem que tenha um caso que houve o ato de coação, mas já se passaram 6 meses. Aí o cliente chega no escritório e fala “doutor, faz um mandado de segurança pra mim”, e eu não vou fazer, porque 120 dias já passaram... “não, mas eu pago bem”, ah então eu faço?! Não posso! Porque aquilo não é tecnicamente indicado, não importa que o cliente/paciente tenha pedido, o ato é profissional, é meu, e isso é muito difícil do profissional se conscientizar, que é ele quem tem a rédea da autoridade, mas não do poder de decisão. A autoridade é dele de dizer o que pode/não pode ser feito, e a partir daí a gente passa pro poder de decisão, que é compartilhado entre paciente e profissional; eu não inverto as coisas, não coloco o carro na frente do boi. Não posso dizer assim: “você decide o que quer que faça e eu faço do jeito que der”. Então nessa área, dentro da HOF, a gente ainda tem o viés do procedimento que está sendo feito poder ou não ser realizado pelo CD, o que agrava a situação. E agrava essa situação, no campo ético me parece claro, não precisamos alongar, mas no campo de responsabilidade civil a gente estaria numa ideia de que o profissional está extrapolando as suas atribuições, e a partir dali, tudo que ele fizer já pode ser considerado uma conduta culposa, a gente ainda precisaria analisar dano e nexo de causalidade. Porque mesmo praticando uma conduta culposa (diria eu nesse caso inclusive dolosa), não necessariamente aquilo gerou dano. Então não é o fato dele ter agido em procedimento de HOF que o conselho diz que ele não poderia fazer, que necessariamente vai acarretar uma condenação cível, isso vai depender da existência de outros fatores. Porque na responsabilidade civil nós precisamos ter 3 pressupostos: uma conduta culposa, dano e nexo de causalidade. O dano tem que ser decorrente daquela conduta; se eu não tiver um desses 3 pressupostos, não tenho responsabilidade civil. Então imaginem que foi feito um procedimento que não poderia ter sido feito, mas isso não causou dano, ou o dano que foi causado não é decorrente da conduta do profissional, o paciente pode ter feito alguma coisa no pós-operatório, por exemplo, que levou à esse dano, ou seja, culpa exclusiva da vítima: não tem responsabilidade civil. Para esse tipo de situação, na responsabilidade criminal e na ética, a gente analisa conduta, independente do dano e do nexo de causalidade, por isso que são âmbitos diferentes; na ética é a conduta, se você ler o código de ética, vai ver lá que geralmente as infrações éticas estão associadas a um verbo, ao fazer ou deixar de fazer: participar de publicidade, anunciar, angariar... é o verbo, independentemente do resultado. Vejam lá nas publicidades, não fala que a publicidade precisa ser falsa pra ser infração ética, não fala isso. Se deixar de colocar o CRO já poderia ser infração ética, independente se causou ou não dano pro paciente. Na responsabilidade criminal, poderia se considerar o exercício ilegal da medicina, mas hoje (hoje, dia 15/02/22) eu não conseguiria dizer isso, porque existe decisão judicial dizendo que o CD pode fazer. Como é que eu posso dizer que alguém é criminoso por exercício ilegal da profissão se tem decisão judicial atribuindo a alguns a possibilidade de praticar aquele ato? Então crime, hoje, não me parece que tenha. Porque teria que ser doloso; como é que posso dizer que alguém está agindo com dolo, se um outro CD igual a ele pode fazer porque tem uma decisão judicial? A decisão judicial não qualificou o CD autor da ação, não disse que ele tem mais competência que o outro, ela diz que o CFO não poderia ter feito essa proibição. Em tese, aquilo se aplicaria a todos (na prática, não), então eu não conseguiria afirmar um crime nessa situação, porque teria que ter o dolo do agente, e aí não tem, a competência que aquele CD tem, eu também tenho, eu só não sou autor da ação judicial. E eticamente? Também, hoje, ainda não poderia ter essa punição, em razão dessa ação judicial. Mas tudo isso é opinião, seja em relação ao crime, seja em relação à infração ética. O que o conselho vai suspender cautelarmente o CD que está fazendo esses procedimentos e que não é autor dessa ação judicial. Mas tudo isso é opinião, seja em relação ao crime, seja em relação a infração ética. O que o conselho fez então foi suspender a resolução CFO 237/2021. Aí o conselho vai fazer o quê? Vai suspender cautelarmente esse cirurgião-dentista que está fazendo esses procedimentos e que não é autor dessas ações judiciais. E olha a importância de como é que as coisas vão se desenrolando. Eu tenho uma decisão do conselho suspendendo cautelarmente o exercício dessa desses procedimentos ao cirurgião-dentista, aí ele faz... sabe que crime que ele cometeu? O do artigo 205 do código penal, que não é o exercício ilegal da profissão, mas é o exercício da profissão contra a decisão administrativa. É crime também. Olha como é que a coisa é muito complexa pessoal... É muito complexa! Então olha só, o dentista poderia não ser apenado no conselho porque tem a decisão judicial. (Ele não é autor das ações judiciais tá?) Então ainda tá discutindo, não sei o que tem... não teve má fé, - tá... tá bom. O conselho vai lá e faz o quê? Suspende cautelarmente ele. Aí ele continua fazendo o procedimento e agora ele está agindo de forma contrária a decisão do administrativa do conselho... Agora ele praticou o crime! Não do exercício ilegal, mas o do exercício profissional contra a decisão administrativa. É muito, é muito... é um emaranhado de coisas que a cada nova informação a gente pode deslocar a análise para uma outra coisa, pra um outro ponto, pra uma outra circunstância.
Pergunta (Laura): Sobre a propaganda odontológica frente ao Código de Ética Odontológico, hoje, pelo menos aqui na Paraíba, a gente vê muito uma divulgação de antes e depois de pacientes e atualmente a gente está vendo também a divulgação de clínicas ou cirurgiões-dentistas como vencedores de prêmios de melhores do ano de uma cidade. Então qual a sua opinião enquanto a divulgação?
Coltri: A parte da publicidade em relação a selfie ou antes e depois com o paciente, o CFO tem a resolução 196/2019. Cuidado porque a 196/2019 não revogou o código de ética, ela na verdade alterou o código de ética, são coisas diferentes. Por quê? Porque continua valendo o que está no código de ética, salvo aquilo que está na resolução 196/2019, tá? Então o que que eu quero dizer com isso? Que se eu não estiver nas condições específicas da resolução 196/2019, vale o código de ética. Então por exemplo, uma clínica pode postar selfie de paciente? Pode postar antes e depois? Não! Por quê? Porque a resolução 196/2019 não excepcionou o caso de clínicas, tá? Continua valendo o código de ética, o art. 14 e inciso 3, que diz lá que não pode fazer referência a casos identificáveis. Então não pode expor a figura do paciente ainda que com o consentimento dele, salvo publicação científica, acadêmica, etc e tal. Então se eu não tiver na exceção da resolução 196/2019 vale o que está no código de ética, então clínica não poderia. Quem poderia? O cirurgião dentista que executou o procedimento, desde que tenha termo de consentimento do paciente para essa exposição. É isso que eticamente ampara o cirurgião-dentista para que ele não seja processado e punido pelo conselho. O que a gente percebe a partir daí é que essa publicidade pode gerar uma série de outras repercussões. Primeiro daqueles que só leram o “fica autorizado” como a gente já falou nesse nosso bate-papo hoje. Aí a clínica vai lá e publica, o cirurgião-dentista pega trabalho do colega, “não mas a gente trabalha na mesma clínica, ele só trabalha aqui na sala ao lado, mas é na mesma clínica” e publica. O marido pega a foto da mulher e vice-versa (Cirurgiões dentistas) e publica né? “Ah minha esposa foi autora desse trabalho, a coisa linda aí” e publica... enfim tudo isso continua sendo infração ética. Porque ele só lê o “fica autorizado” né? E aí lascou o resto. Então, não poderia, tá? Mas para além dessas questões, a gente também tem os aspectos cíveis e criminais, né? A exposição de um paciente (e hoje com grande força também, a lei geral de proteção de dados), porque a imagem do paciente é um dado sensível também porque ali naquele caso é um dado de saúde. Então quando o profissional expõe a figura do paciente sem o correto consentimento do paciente, pode ter gravíssimos problemas. O paciente sabia que ia pra rede social? Pode até saber... O paciente sabia que na rede social o trabalho que ele próprio (paciente) acha que ficou bom e que o dentista disse pra ele que ficou bom, pode não ter ficado bom? Quantas e quantas vezes a gente (nós aqui) olha pra uma imagem de alguém famoso (ou de uma pseudo celebridade) que diz lá que fez a harmonização e você fala “nossa!!! isso aí é uma desarmonização”. Então aí vai alguém e comenta na foto: “Ficou ruim”, “Ficou parecendo o dente do Roberto Firmino”, “Ficou mais branco que Mentex”. Não é assim? Não conseguiu um alinhamento. Aí vai o outro colega lá e fala assim “não mas, oh... não está com o alinhamento correto, isso era caso para tratamento ortodôntico e não para simples colocação de faceta ou de lente”. Aí o colega que está olhando com o olhar clínico mesmo, né?, olhar técnico... aquilo pode gerar um constrangimento para o paciente... ele foi informado que aquilo podia acontecer ou ele foi informado que realmente ficou bom? Então veja os problemas que podem decorrer dessa exposição ainda que não haja infração ética. Então se o cirurgião-dentista seguir a resolução 196/2019, não tem infração ética. Se ele não seguir vai ter problema. Em relação ao prêmio “melhor do ano” tem que ter o cuidado porque o problema não é ser eleito melhor do ano... Vamos pegar o contexto da Covid-19. Em tempos de pandemia, alguns profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, etc) foram reconhecidos e receberam prêmios pelas suas condutas. Poxa... ela não pode receber esse prêmio? A pessoa foi eleita pelos pares, um reconhecimento do trabalho sério que ela fez, claro que pode receber! Mas qual é o grande problema? Esse prêmio tem o objetivo autopromocional, o objetivo não é de reconhecimento profissional propriamente dito, mas sim de um viés de captação de clientela por intermédio desse prêmio recebido. E aí nessa dinâmica que vocês mencionaram de curtida (do Instagram) ou de incentivo a que seja feito elogio, etc... Isso a gente tem proibição desde o decreto 4.113/1942, que diz que o cirurgião-dentista não pode sistematicamente veicular esse tipo de informação, esse tipo agradecimento... vamos dizer assim. E quando há um incentivo por parte do cirurgião-dentista, ele tá tentando captar a clientela. É diferente do reconhecimento pelos pares, tá? É diferente. Como o primeiro exemplo que eu dei. A gente está em dois mundos diferentes, tá? Duas situações bem diferentes. Então tudo que tiver um viés autopromocional e de captação de clientela, (eu gosto muito dessa expressão aqui que a gente usa no direito de “granjear a clientela”, eu adoro porque parece que cliente é galinha né?) ...mas o que é vedado então, é o conteúdo e o viés autopromocional, tá? É por isso que eu digo assim “ó, se tem um reconhecimento técnico, ok, se tem um reconhecimento por algo que foi feito em benefício de pacientes, descobriu alguma coisa, evitou alguma coisa... ok, agora quando é autopromocional, quando fala mais do profissional que da conduta do profissional, pode ter certeza que está caminhando mal, né? Como é que é uma publicidade boa na odontologia? “Eh... aqui na clínica, a gente realiza tais procedimentos, esses procedimentos servem para esses casos com esses possíveis benefícios”, isso tá falando de procedimento, está falando de odontologia. Agora quando diz assim, “eu sou o melhor do melhor do mundo, porque eu tenho isso, eu faço aquilo, eu sou formado não sei onde, eu estudei não sei quando, não sei porquê”, eu estou falando de mim... o que é que isso agrega de informação para o paciente sobre o ponto de vista que não seja autopromocional? Nada! Essa é a publicidade autopromocional que tende a ser proibida pelos conselhos, por quase todos os conselhos profissionais que a gente tem. Então esses prêmios de melhor do ano, a Laíse comentou e na minha terra era assim também: Quem pagava era homenageado no final do ano, né? “O melhor comerciante da cidade, o melhor posto de gasolina da cidade, o melhor advogado da cidade, o melhor dentista da cidade”. Isso é auto promocional, beleza? Muito cuidado com liberação geral de publicidade, porque normalmente a gente ouve isso de colegas: “Ah, eu sou a favor de liberar, cada um faz o que você que quiser na publicidade”. Cuidado, viu? Porque quando liberar os grandes conglomerados vão atropelar os pequenos. Não existe mercadinho mais em todo lugar, não tem mais a vivenda igual tinha antigamente, por quê? Porque as grandes redes dominaram, elas colocam no Jornal Nacional, no intervalo da novela, no seu no seu Instagram, e se você pesquisou que quer fazer um churrasco, no segundo seguinte já vai vir uma postagem ali patrocinada de um supermercado que está vendendo carne barata, não vai vir da vivenda da esquina. Então quando a gente libera geral, quem tem mais poder aquisitivo acaba com quem não tem. Tá? Por isso que eu não sou contrário à publicidade, muito pelo contrário, mas a gente tem que ter cuidado com o que a gente quer. Porque quando liberar o dentista da esquina, o advogado da esquina, não vão sobreviver. Não vão sobreviver! Assim como os mercadinhos, assim como as oficinas mecânicas, assim como uma série de serviços não sobreviveram às grandes redes. Então assim, eu não sou contra a grande rede também, só pra deixar claro isso, né? Só que assim... cuidado com o que vocês pregam, porque às vezes isso pode ser contrário a você. É esse o ponto, é só isso, é refletir sobre o que eu estou dizendo. A mesma medida não serve pra todo mundo, infelizmente ou felizmente. tá? Mas eu acho que a gente tem que fazer publicidade sim, advogado, cirurgiões-dentistas... e dá pra fazer publicidade legal, viu? Seguindo as normas, dá pra fazer sim, dá pra fazer sim, né? Só não ser muito apelativo.
Laura: Essa foi a última pergunta, desde já queria agradecer porque foi muito enriquecedor, vou falar em nome de todos os acadêmicos mas assim... todo mundo adorou e ficou impressionado o quão sua didática para pra explicar os assuntos facilitou o entendimento de todo mundo, foi muito esclarecedor e a gente queria agradecer demais pela sua presença!
Coltri: Obrigado Laura, eu que agradeço. Eu sei que é difícil perceber, às vezes vocês ainda não vivenciaram alguma dessas coisas, mas é aquela velha história, né? Se eu voltasse a fazer a faculdade de direito hoje... nossa... eu ia aproveitar muito mais! Claro! Eu já tive uma vivência, né? Aí fica fácil, né? Aí é o profeta do acontecido, né? É o engenheiro de obra pronta, né? Eu falo assim, ainda que que vocês não tenham essa vivência e nem era esperado que tivesse... o que eu quero deixar claro pra vocês é que independente dos assuntos que a gente falou, existe a importância do estudo, a importância do aprimoramento profissional... não importa o que o colega do lado faz, cada um tem suas dores, cada um tem seus medos, cada um tem suas coisas próprias mesmo, tá? Então é a importância de estudar, importância de não parar nunca e a importância de ouvir!
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