Um viking. Um
naufrágio. Um tsunami. Um queijo. O que tudo isso tem a ver com o DNA em
Odontologia Legal? Continua essa leitura que você vai entender.
Sabemos
que os cinco princípios básicos exigidos para qualquer sistema ou procedimento
identificatório são: unicidade, imutabilidade, perenidade, praticabilidade e
classificabilidade. Assim sendo, as impressões digitais e a dentição são
largamente utilizadas no processo de identificação, desde que haja registros
prévios dessas características. Há ainda a preocupação com o corpo que se
encontra em um estágio avançado de decomposição ou em casos de desastres em
massa, o que dificulta ainda mais o processo identificatório. O que acontece
quando não é possível utilizar os métodos supracitados? O DNA entra em cena!
A
molécula de DNA apresenta características únicas para cada indivíduo, com
exceção dos gêmeos idênticos. A análise do DNA é considerada um processo de
identificação comparativo, pois os exames forenses de DNA consistem em testes
comparativos do perfil genético do periciando (pessoa que está passando por uma
perícia) com seus familiares ou com objetos de uso pessoal do próprio
indivíduo. Desta forma, o processo de identificação é possibilitado mesmo
diante da inexistência de documentos anteriores, tendo em vista a
disponibilidade de famílias inteiras que podem oferecer material de referência.
Uma das
vantagens encontradas na molécula de DNA é que seus polimorfismos (diferenças
entre os indivíduos), que são características herdadas, não mudam ao longo do
tempo, ou seja, são idênticos durante toda a vida. A velocidade da realização
dos exames também se configura como uma vantagem, principalmente em desastres
em massa. É válido salientar que o DNA é mais um exame, não uma sentença, sendo
a análise forense do DNA um elemento a se somar ao processo investigativo.
Você
pode estar se perguntando: “Mas cadê a odontologia em tudo isso?”. Pois
bem, o elemento dentário representa a estrutura mais resistente do corpo,
sendo, portanto, encontrado com maior frequência para fins identificatórios. As
estruturas dentárias (esmalte, cemento, dentina e osso alveolar) apresentam uma
dureza que propicia condições para a preservação e integridade do DNA, apesar
das adversidades do meio, como variações de temperatura e pH. Logo, o DNA da
polpa dental é de extrema importância em processos de identificação,
especialmente quando outros métodos não são considerados viáveis ou até mesmo
quando os tecidos moles do corpo não são capazes de oferecer a amostra,
entendeu?
O genoma
corresponde ao conjunto de toda a informação genética de um indivíduo, estando
localizado no núcleo (DNA nuclear) e na organela citoplasmática
conhecida como mitocôndria (DNA mitocondrial). A mitocôndria, por ser
responsável pela gênese de energia, necessita de DNA próprio capaz de
suprir-lhe. Haverá casos em que a análise do DNA nuclear não poderá ser
aplicada, sendo a única alternativa, ou pelo menos a de maior sucesso, a
análise do DNA mitocondrial. Apesar do DNA mitocondrial apresentar herança
exclusivamente materna, permite identificações através de gerações distantes na
linha materna. Desta forma, por mais que o DNA nuclear apresente herança
paterna e materna, apenas permite identificações através de gerações próximas.
Uma outra vantagem a ser mencionada do DNA mitocondrial é sua abundância em
restos humanos, visto que restos de esqueletos antigos podem dar boas
sequências informativas de DNA mitocondrial.
Os vikings. Chegou a hora de falarmos sobre eles. Chegou a
hora de vermos como o DNA mitocondrial mudou sua história. Curioso(a)? Então
vamos lá... Os historiadores acreditavam que o corpo do último rei viking Sven
Estridsen havia sido depositado ao lado do de sua mãe Estrid em 1074. Contudo,
de acordo com a revista inglesa New Scientist, através de análise
da polpa de molares extraídos dos esqueletos (testes de amostras de DNA
mitocondrial), chegou-se à conclusão de que os corpos não eram de mãe e filho.
O desenvolvimento dos dentes e ossos ainda sugerem que a mulher enterrada
morreu com aproximadamente 35 anos, enquanto a história registra que Estrid
faleceu aos 75 anos.
Também
chegou a hora de falarmos sobre o naufrágio. Pela imagem acima você já deve
saber que estou falando do Titanic. Através do projeto Titanic Ancient
DNA iniciado em 1998, uma criança, até então conhecida como ‘Unknown
Child’, pode finalmente ser identificada. Para identificação haviam
disponíveis um pequeno fragmento de osso e três dentes. Ocorreu a suspeita de
que o corpo pertenceria a Gosta Leonard Palsson, logo descartada em virtude da
análise do DNA mitocondrial presente no fragmento ósseo. Então partiu-se para a
análise dos dentes. Depois de muitas pesquisas, descobriu-se que Sidney Leslie
Goodwin de 19 meses, e Eino Viljam Panula, de 13 meses, tinham a mesma
descendência materna de cerca de 2000 anos atrás (!!!!!!), por isso, das
amostras previamente coletadas, o DNA mitocondrial das amostras das duas
famílias foram idênticas. Mas calma que o caso não ficou sem solução! O grau de
desenvolvimento e maturação dos dentes concluiu que a ‘Unknown
Child’ era Eino Viljam Panula.
Os
métodos para exame do DNA consistem na identificação dos polimorfismos, podendo
levar em consideração variações nos comprimentos dos segmentos (detecção
dos RFLP) ou variações nas sequências de bases específicas (PCR –
AmpFLP). O tamanho dos segmentos varia bastante entre os indivíduos em
decorrência do número variável de repetições em sequência. A sequência de
bases oferece informações sobre o DNA com base na comparação de sequência de
fragmentos de DNA de tamanhos semelhantes. Então, como escolher qual método
aplicar?
Se
a intenção for testar se uma amostra biológica pertence ao suspeito ou a
vítima, qualquer um dos métodos oferecerá informações úteis e suficientes.
Entretanto, existirá casos em que o método escolhido dependerá da qualidade e
quantidade de DNA extraído da amostra. Se a amostra for superior a 50
nanogramas de DNA de alto peso molecular, deverá ser realizado o teste de RFLP.
Se o DNA estiver bastante degradado, deverá ser realizado o teste AmpFLP.
Ainda dentro deste assunto, não posso deixar de falar sobre os
marcadores STR. O STR corresponde a regiões hipervariáveis do DNA
constituídas de repetições consecutivas de fragmentos. Este é o marcador de
escolha na maioria dos exames genéticos em procedimentos identificatórios, em
virtude do alto poder de individualização considerando o alto grau de
polimorfismo, a abundância no genoma e a praticabilidade laboratorial. Vale
salientar que a caracterização dos marcadores genéticos é de extrema
importância para avaliar o polimorfismo em populações diferentes, encontrando,
portanto, dados úteis para aplicação forense.
Depois de conhecer (ou relembrar) os métodos de análise do DNA, você deve
estar se perguntando: “Tá, mas como é que faz para coletar o material para
fazer a análise?” Ok, vamos por partes. O DNA pode ser extraído de uma
diversidade de materiais biológicos, como amostras de sangue, saliva, osso,
dente, tecidos e órgãos, fios de cabelo, sêmen, dentre outros. Mas como estamos
falando sobre o DNA na Odontologia Legal, abordarei apenas o DNA extraído de
tecidos e estruturas orais e da saliva.
O
DNA poderá ser extraído dos tecidos moles da boca, como, por exemplo, da
gengiva e da língua. Contudo, haverá casos em que essas estruturas, assim como
qualquer outro tecido mole, não estarão disponíveis, sendo necessário a
utilização do elemento dentário. O DNA presente na polpa dentária é conservado
em virtude da dureza do elemento dentário e resistência do mesmo frente a
diversas circunstâncias. Mas como realizar a extração do DNA da polpa dentária?
Eu imagino que o seu primeiro pensamento foi destruir o elemento dentário para
facilitar o processo.
É
sempre necessário um planejamento para decidir a melhor maneira de acessar este
DNA, tendo como primeira hipótese uma abordagem exclusivamente conservadora e,
EM SEGUNDO CASO, deve-se considerar uma técnica mais “agressiva”. Por quê? Acho
que você já sabe a resposta! Porque os elementos dentários são extremamente
úteis na Odontologia Legal viabilizando processos de identificação, por isso
não devem ser destruídos arbitrariamente.
O
tsunami que ocorreu na Ásia Oriental em 2004 dificultou bastante a
identificação das vítimas. A extração de DNA dos corpos das vítimas era
praticamente inviável, tendo em vista que tais corpos encontravam-se degradados
e com material provavelmente contaminado. A coleta de impressões digitais
também era bastante difícil. Desta forma, optou-se, dentre outras medidas, pela
extração de dois elementos dentários, de preferência pré-molares, para a
análise de DNA. Um maior número de elementos disponíveis sempre consiste em
maiores chances de se obter um DNA apto para o exame. Ademais, os molares
normalmente são as peças de escolha, pois, além de estarem mais bem protegidos
em decorrência da sua posição, apresentam as maiores câmaras pulpares.
E
o DNA salivar? A saliva humana é uma importante fonte de DNA para uso forense,
sendo normalmente encontrada em elementos presentes no local do crime, como uma
bituca de cigarro por exemplo, ou mordeduras presentes na vítima (ou elementos
mordidos, mas em breve falarei mais sobre isso). O DNA isolado da saliva
recuperada de materiais no local do crime pode ser analisado, a fim de se
comparar com amostras colhidas de possíveis suspeitos.
Talvez, em algum lugar do seu cérebro, você foi conferindo se eu falei
sobre tudo que citei lá no início. Viking: CHECK! Naufrágio: CHECK! Tsunami:
CHECK! Mas e o queijo? Ok, se você chegou até aqui pelo queijo, então é o
queijo que você terá.
Imagine-se em uma cena do crime. Você encontrou um pedaço de queijo com
uma marca de mordida (by the way, lê o texto sobre marca de mordida aqui
do blog que tá incrível!). O que você faz? Exato, pensa que naquela mordida tem
saliva e que naquela saliva tem o DNA de um potencial suspeito. Pois bem, os
peritos também pensaram assim. Recolheram o pedaço de queijo, congelaram para
preservar as características da marca de mordida e da saliva e aplicaram a
técnica do cotonete duplo para coletar amostras de DNA. Coletaram uma amostra
do sangue do suspeito. Então, utilizando a técnica PCR em dez STR loci,
conclui-se que o DNA do queijo se originou do suspeito.
Com
relação a coleta das provas, é de extrema importância a presença de um
odontolegista, pois, elementos que, por vezes, são interessantes ao mesmo,
podem não ser para profissionais que não são da área. Estes elementos podem ser
questões cruciais para o manuseio das provas. O objetivo sempre deverá ser que
eventuais fontes de contaminação sejam evitadas e que todo o possível seja
feito para que o DNA seja conservado o mais intacto possível, em decorrência de
condições ambientais que podem ser evitadas.
Tifany Shela Albuquerque Borba de Andrade
REFERÊNCIAS
Daruge E, Daruge Júnior E, Francesquini Júnior L. (2016). Tratado de Odontologia Legal e Deontologia. [Minha Biblioteca]. Retirada de: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788527730655/
Vanrell JP (2019). Odontologia Legal e Antropologia Forense, 3ª edição. [Minha Biblioteca]. Retirado de: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788527735223/
Bajaj A. Disaster victim identification: Tsunami. Br Dent J. 2005 Apr 23;198(8):504-5. doi: 10.1038/sj.bdj.4812255. PMID: 15849590.
Sweet D, Hildebrand D. Saliva from cheese bite yields DNA profile of burglar: a case report. Int J Legal Med. 1999;112(3):201-3. doi: 10.1007/s004140050234. PMID: 10335888.
Silveira EMSZSF. Forensic dentistry: the importance of DNA to the examination by the experts. Saúde, Ética & Justiça. 2006;11(1/2):12-8.
Nenhum comentário:
Postar um comentário